Eu me organizo pra me desorganizar.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O ator-performer e a dramaturgia do desejo

As recordações borbulham. Elas brotam, naturalmente. Recordo-me da experiência de imersão coletiva "O ator-performer - Dramaturgia do Desejo", um processo intensivo de pesquisa e criação artística sob a Direção de Silvana Abreu.

Acredito que isso que escrevo agora é uma mistura de ficção com realidade, de poesia com prosa. Toda essa provável mistura são reflexos de uma experiência que só pôde ser vivida graças ao encontro, à arte do encontro.

As possibilidades de se viver diferente, de encontrar - num horizonte qualquer - a imaginação simbólica de sua existência. Acredito ser essa, uma das grandes missões do artista. Para o ator-performer, adentrar no campo minado do perigo e da sorte. Um guerreiro que segue diante dos desafios colocando seu corpo à xeque-mate. Um corpo que é movimento, acontecimento, fluxo. Um corpo-em-vida¹, em devir. Por isso, investi-lo, buscá-lo. Sê-lo.

São Francisco Xavier, interior de São Paulo. Cinco dias de construção. Cinco dias de arte. Milhões de dias de vida. Um teatro de carne, pele e osso². Um teatro que irradia e contamina. Num mergulho dos nossos desejos, construir uma dramaturgia própria, que não seja só princípio e construção da obra, mas que traga à tona a força da sensação da arte, provocando fricções, tendo o desejo como potência de afirmação da vida e fortalecendo o teatro na criação de realidade, no aqui-agora. Afetar e ser afetado. Na dramaturgia do desejo é possível descobrir um vocabulário próprio de expressão física e emocional, pois o corpo responde ao que ele mesmo pede: o próprio desejo. Não há vida sem ele.

E, para além disso, celebrar o rito - individual e coletivamente - num ambiente permissivo, reunindo pessoas com objetivos comuns, mas com desejos únicos.

Já se passaram alguns dias após a experiência. Estes foram necessários para voltar um pouco ao cotidiano, reconhecendo nele também, suas poesias e metáforas. Embebendo-se um pouco da luz de Apolo, equilibrando-a com a sombra de Dionísio. Quis muito escrever algo sobre o workshop, mas ainda estava tudo muito dilatado. Então, esperei passar uns dias e falar um pouco, em linhas gerais, sobre minhas impressões e traços de tudo o que vivi.

Era uma alegria acordar mais cedo e ir trabalhar naquela sala. O frio petrificava um pouco essa alegria, mas o desejo não. Sempre por volta das 7h, mesclava o que estava aprendendo com os fluxos de criação que surgiam. Entretanto, havia um grande problema: Minhas companheiras de quarto sempre acordavam com o despertar do meu celular, menos eu! Uma delas, em específico, ficava 'p' da vida. Era engraçado (Risos). Todos os dias foram assim, vivenciando o máximo possível, pois sabia que ia passar rápido e forte, como uma lapada de cana.

Durante o período, uma alimentação regrada, sem carnes. Salve, salve aquelas mãos mágicas da cozinha. Sonho com aquela coalhada matinal todos os dias! Além disso, uma paisagem que descia sobre os olhos um eminente entusiasmo. Um ambiente extremamente propício à criação. A energia de cada um, do lugar, o barulho da cachoeira, a natureza. Enfim. O banquete era farto. Banquete de arte, de conhecimento, de alimento. Foi mágico!

A cada dia vivíamos coisas diferentes. Consumíamos intensidades diferentes. E, já no primeiro dia de apresentação, coloquei meu nariz de palhaço e disse: É agora! Ao fim da apresentação, a Silvana me pediu para eu colocar o nariz novamente e também pediu que eu dançasse. Senti meu corpo vibrar, um Ianomâmi. A poesia do riso eclodiu, provocou, alterou, modificou. Pude perceber o palhaço como um ser universal, não importando as culturas em que ele se encontra, nem tão pouco se ele é assim ou assado. Importando, de fato, a conexão que o "paiaço" (assim que costumo chamar) estabelece através da conquista do riso. Falando (pelo, de, com, através do,) coração com a condição humana da queda. Este ser que elege - inevitavelmente - como postura e crítica a inerência do riso, fazendo arte com a tragédia, brincando de rir com o trágico.

Ao longo do curso, foram muitas vivências que nasciam de trabalhos corporais, éramos uma fábrica de edificação corpórea. Éramos Como o tao. A solidão tinha uma lugar distante. Era uma "solidão pública", como dizia Stanislavski.

Na minha segunda apresentação, preferi descobrir outros desejos que dialogassem com aquele espaço, com as pessoas e objetos ali presentes. Assim como o presente muda constantemente, o espaço também. Queria esse efeito. "Cuando se crea un espacio su sugnificado cambia constantemente, porque él presente también cambia constantemente." (BROOK. In: Él espacio abierto). Quis uma 'mini-itinerância' com o público dentro desse contexto e a exploração do texto a partir do que venho pesquisando/trabalhando enquanto ator. Era necessário, talvez, investigar as sonoridades do espaço, já que venho pesquisando uma dramaturgia de sons (vocais ou não), uma dramaturgia sonora³. Senti que era preciso uma outra música e descobri um texto suavemente erótico que se encaixava com o que já vinha buscando nesse curto prazo de tempo. O texto era de Catharina Ruffo e ele já trazia a ação, a intenção em si. Cabia a mim experimentar esses tons. E foi muito interessante. Num momento da cena, uma arara evocou seu cântico e brincou comigo, fazendo festa com todos os presentes. Sensação impagável!

"Se utilizo o termo guerreiro, penso novamente em Castaneda mas todas as escrituras também falam de guerreiros. Encontra-se tanto na tradição hindu, como na africana. É alguém que é consciente de sua própria mortalidade. Se tiver que afrontar os cadáveres, os afronta, mas se não tiver que matar, não mata. Entre os índios do novo mundo se diz dos guerreiros que no campo de batalha tem um coração terno, como uma jovem donzela. Luta para conquistar o conhecimento, porque a pulsão da vida se torna mais forte, mais articulada nos momentos de grande intensidade, de grande perigo. No momento do desafio aparece a ritmização das pulsações humanas. O ritual é um momento de grande intensidade. Intensidade provocada. A vida então se torna rítmica. O performer, sabe ligar o impulso corpóreo à sonoridade (o fluxo da vida deve articular-se em formas). Os testemunhos entram então em estados intensos porque, dizem, estão sentindo uma presença. E isto, graças ao performer que é uma ponte entre o testemunho e algo. Neste sentido, é pontifex, fazedor de pontes." (GROTOWSKI. In: O performer).

Eis a imagem do guerreiro. Um homem da ação. O ator-performer é homem da ação, um sacerdote e está imune de qualquer gênero estético. O Performer é um estado, uma presentificação do ausente. Sua técnica deve estar aliada a seu favor, fluir naturalmente consigo mesmo. A técnica como libertação. Assim, pude ver a mímica por outros ângulos e o que ela provoca. Experienciar a transição dramática no âmbito dessa técnica. No âmbito da minha poética, pois sendo o ator um poeta do movimento, é somente acessando-o que ele - necessariamente - arquiteta sua arte.

Pude ver o encanto de todas as idades. Os contextos dramáticos, a experimentação da imaginação criativa, as escolhas. Escolhas e imaginação, traçando caminhos, observando os corpos, as potencialidades, o movimento preenchido do mais alto sentido. E, evidentemente, o pensamento operando na realidade, no ato, no crível.

No adestramento do ator Nô, a dedicação absoluta é algo evidente por si. Zeami, nos traz a imagem da flor, que brota da nossa força espiritual. Corpo, mente e espírito. É a construção de uma longa estrada de estudos. Uma imensa jornada.

Nesta jornada fomos construindo produções de sentido ao emanar desejos, vontades. A presença do desejo como latência de criação e pulsação, expandindo a percepção do corpo que, por sua vez, explode em movimento e detona dinâmicas. Assim, íamos ligando as teias de nossa própria história, construindo uma dramaturgia orgânica, vibrante, uma dramaturgia do desejo.

Quais as ameaças que o futuro encerra, a partir de agora? A continuidade dos passos que irão fortalecer, cada vez mais, o meu ofício, o ofício de ator, performer e palhaço. Coragem sempre! Evoé para todos!

¹Em www.silvanaabreu.com;

²Zeami, em seus tratados sobre o teatro Nô: "Na representação do Nô há três elementos básicos: Pele, Carne e Osso. Os três não são quase nunca encontrados juntos no mesmo ator. Quando se trata de explicar os elementos da Pele, da Carne e do Osso em termos de Nô, o que pode ser descrito como Osso, representa aquela força artística excepcional que um ator dotado mostra naturalmente na representação e que chega a ele por meio de sua habilidade inata. A carne pode, sem dúvida, ser definida como o elemento visível numa representação que surge do poder das habilidades do ator obtidas pelo seu domínio das duas artes básicas de canto e dança. A pele, por outro lado, pode ser explicada como uma maneira de sossego e beleza na representação, obtida quando os dois outros elementos são consumados inteiramente. Colocando de outra maneira: quando se considera a arte que vem da Visão, a arte que vem do Som e a arte que vem do Coração, pode-se dizer que a visão deveria ser igualada à Pele, o Som à Carne e o Coração ao Osso."

³ In Queimar a casa.

Agradecimentos: Silvana Abreu, Marina Athie, Instituto Gaia Revida, todos os participantes do workshop O ator-performer - Dramaturgia do Desejo. Em especial a Patrícia Zapletal e Catharina Ruffo, minhas companheiras do quarto 11. À Tacira Coelho, pelos risos e caretas. À Camila Alves, pelo carinho. À Mario Filho , por me apresentar o caminho do riso. À Danilo Pinho, que está na Bahia de todos os santos. À todos que acreditam na arte, a minha tia Joselma por ter me proporcionado essa vivência, aos amigos, aos grandes mestres do teatro e do ator-criador. Aos que, de algum modo, ocuparam a posição do líder que compartilha conhecimentos - portanto, meus mestres -, À vida.

www.silvanaabreu.com

*Foram consultadas as seguintes fontes/livros: O performer (Texto de Jerzy Grotowski, Tradução de Sidney Souto); A arte secreta do ator (Eugênio Barba); Teatro: Leste e Oeste (Leonard C.Pronko); Uma introdução ao método Margolis: Uma abordagem dinâmica para o treinamento do ator (Texto de Kari Margolis , Tradução de Danilo Pinho); Queimar a casa - origens de um diretor (Eugênio Barba), O ator invisível (Yoshi Oida), El espacio Abierto (Jean Guy Lecat). Obs: Não consigo justificar as linhas do texto nesse blog!!!!

Guilherme Bruno. twitter.com/GuilBruno. https://www.facebook.com/guilherme.b.delima

3 comentários:

  1. Meu querido amigo, paiaço...
    Acordar e ler seu texto me trouxe toda a lembrança da experiência bonita que nos permitimos... E uma gratidão à vida e ao que ela comporta de trágico e de riso! Sou muito grata por termos nos encontrado por essas rodoviárias da vida... Com carinho, Pati

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  2. meu deus!!! adorei reviver nossa experiência a partir do seu olhar e falar, calmo, preciso, sensível... amo você!!! bj, fe

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  3. querido guilherme, seu texto tocou-me tanto que preciso de tempo pra escrever algo mais. Por enquanto, digo que você conseguiu uma tão bela tradução do que aconteceu no nosso encontro que emociona e soube ainda combiná-la como um toque acadêmico que eu andava precisando. obrigada.
    Célia

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