Eu me organizo pra me desorganizar.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Marat/Sade: Loucura, sangue e revolução

17 de setembro de 2012. Após quase 4 meses de greve nas Universidades e Institutos Federais do Brasil, os servidores e alunos retomam suas atividades. Estava precisando respirar novamente os ares das aulas de teatro no "Cefet". É uma necessidade criar e é uma alegria compartilhar a criação coletiva com homens e mulheres que erguem o fazer teatral.

Depois de uma aula sobre dramaturgia e a maravilhosa leitura da farsa do advogado Panthelin, fomos para a aula de interpretação II. Dividimo-nos em grupos de 3 ou 4 atores, onde o objetivo era irmos à biblioteca e cada um escolher uma cena de um texto teatral de qualquer gênero. A minha escolha foi Marat/Sade do Peter Weiss.

O Marquês de Sade sempre me fascinou com sua filosofia contundente, permeada de eroticidade e desejo, o que lhe custou longos doze anos no Hospício de Chareton. Além disso, Jean-Paul Marat, um dos grandes arguidores da Revolução Francesa, teve um papel fundamental para a história daquele povo. Temos então uma tragédia da revolução que aborda a loucura e a representação desta loucura dentro de um Hospício. Temos então uma espécie de metateatro. A burguesia parisiense era sedenta em ver esse tipo de teatro que provocava, naturalmente, uma experiência 'exótica'. Um teatro de loucos, feito dentro de um Hospício, sendo dirigido por Sade; um homem acusado de pornografias e atos libidinosos. Como pano de fundo tem-se uma sociedade cuja guilhotina laminava a população, causando sangue e horror.

O nome da obra é quilométrico: A Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat encenado pelos internos do Hospício de Charenton sob direção do Senhor de Sade. Quase sempre abreviado para Marat/Sade. Foi escrita em 1963 e no Brasil, encenada pela primeira vez por Ademar Guerra, tendo no elenco Eugenio Kusnet, Irina Grecco, Rubens Côrrea, Armando Bógus, Aracy Balabanian, entre outros. Em 65, o diretor inglês Peter Brook também monta a peça na Royal Shakespeare Company e difundi o texto mundialmente com sua encenação calcada nos postulados do Teatro da crueldade e na sua visão do 'espaço vazio'. Um texto denso, subversivo, sangrento. E há de fato, indícios que apontam Sade como o homem que dirigia peças com os enfermos dentro da Instituição.

A cena que escolhi foi a de Marat chamando Simonne - sua esposa - para lhe dar mais água fria na banheira. Marat sofria de doenças cutâneas,escrófulas. Para amenizar seus efeitos, passava horas e horas dentro de uma banheira. Ele reclamava de muitas dores e sempre nos diálogos há intervenções sobre a revolução. Revolução de si mesmo, do mundo, de quem? E há também discussões nas entrelinhas da dramaturgia sobre o tratamento que se dava à loucura dentro dos manicômios. Um texto farto e repleto de imagens cuja teatralidade evidenciam Weiss como o novo Brecht e um dos grandes dramaturgos do século XX. Depois da peça de Weiss, Brook também dirigiu o filme

,que ainda estou por ver. Acredito que vale a pena. Na foto, Marat e Sade.

Depois, ao me reunir com os outros integrantes, vi que eles haviam escolhido textos do Nelson Rodrigues e do escritor cearense Eduardo Campos. Agora, só nos resta costurar os textos e pesquisar as implicações dramáticas, criar as cenas, os signos, enfim. O retorno às aulas foi muito bom! E o cenário carioca-cearense-alemão trazem à tona temáticas semelhantes e universais, como a morte, a loucura e a corrupção. Vamos ver no que vai dar.

Foram consultados: Marat/Sade (Peter Weiss) e Corpo e espaço na obra de Peter Brok: Marat/Sade e os limites da representação (Gabriela Monteiro).

domingo, 19 de agosto de 2012

A arte do ator e a festa de Yemanjá: Ruflos de uma gestualidade

A lua era requinte. As percussões ruflavam. A noite estava tão sedutora quanto a mãe das águas. Deusa, Rainha do mar. Cantavam: “Eu quero ver palha voar”. Assim fui recepcionado pela força mítica de Yemanjá.

A arte do ator, de Jean-Jacques Roubine; e, Gesto, Pantomima e Melodrama – As técnicas de interpretação do ator e a sua influência na construção da arte do ator do século XIX, de Robson Corrêa Camargo são dois textos que irão fazer uma ponte entre a festa mítico-religiosa e a gestualidade que envolve a técnica do ator.

O crepúsculo teatral da festa de Yemanjá

Na noite, tem-se a lua, que além de ser privada de sua luz própria, também atravessa fases diferentes e muda de forma. Símbolo de transformação e crescimento, símbolo do sonho e do inconsciente.

Por outro lado tem-se o sol. Fonte de luz, vida e calor. Seus raios representam as influências celestes recebidas pela terra. O coração do universo que ilumina nosso cotidiano.

Tanto a lua quanto o sol se imbricam na festa de Yemanjá. É um verdadeiro crepúsculo. A festa é datada no dia 15 de agosto, mas tudo começa na noite do dia anterior.

Busquei observar a festa não apenas de dia, mas a noite também. Isso, de certa forma, para tentar entender não a influência que o sol e a lua têm na festa. Não é algo com caráter astrológico. Foi um questionamento que me fiz sobre como seria a dinâmica da festa em quase sua totalidade. Em perceber o comportamento e suas possíveis mudanças.

E é neste instante suspenso, crepuscular, que a Festa alcança um elo teatral. Alcança o apogeu de sua beleza. A gestualidade era praticamente a mesma, tanto a noite quanto pelo dia, mas a energia e a força espiritual eram bastante diferentes.

Pela noite só havia dois ‘terreiros’ no espaço em que eu estava. As oferendas foram deixadas pelo comecinho da madrugada e então a mobilização de energia era bem considerável. Todos bastante felizes por aquele instante. Expressões como: “Quem não tem Deus no coração não tem nada”, já quebraram de imediato a ideia de que as tradições Afro-descendentes dessa natureza são diretamente ligadas a ideia do Diabo. Foi um dos momentos mais felizes de minha vida poder presenciar algo tão fantástico, mesmo tendo uma certa consciência de que meu olhar tinha traços acadêmicos. Mas quando estamos diante de fenômenos dessa natureza, qualquer consciência se altera. E, evidentemente, o olhar se rende a poesia.

Num instante, comentaram sobre Nossa Senhora da Assunção, o que demonstra o lado extremamente sincrético da festa. Muito tabaco, bebidas, frutas, oferendas, ebó. As entidades chegam pouco a pouco, cada uma com uma certa gestualidade e uma característica de se mover no espaço diferentes. Pediam coisas diferentes. Celebravam.

No outro dia, pela tarde, a festa havia tomado outras dimensões. Uma infinidade de pessoas, vários terreiros espalhados pelas areias da praia do futuro. Influências diversas. Pessoas, acredito eu, serem, de outras religiões, pois muitos do que estavam na praia poderiam não saber que era dia de Yemanjá. E os que sabiam, iam festejar!

A cada terreiro sentia uma energia diferente. Alguns, a percussão soava mais forte, mais elétrica, evocando forças mais potentes, mais austeras. Assim, a gestualidade também entrava numa zona de impulso que era estimulada pela força da batida do tambor. A percussão tinha um papel fundamental no acontecimento.

A curiosidade movia cada olhar. Corpos que pareciam até suspensos, com pescoços inclinados para ver o que estava dentro daquele círculo cheio de elementos da fé, da natureza, do homem. Assim como havia terreiros em chamas, havia terreiros que estavam mais banhados pela energia aquosa.

A Rainha das águas

A gestualidade dessa manifestação vem de uma história e de uma tradição muito fortes.

A origem dos orixás resultou do amor de Olorum, que uniu Obatalá (infinito azul, o céu) e Odudua (um ponto finito no infinito azul, o planeta que habitamos). Desta união se formaram Aganju (cháo, mãeterra, onde erguemos nossas casas e plantamos árvores) e Iemanjá (água, toda a massa oceânica). Do amor destes últimos nasceu Orungã (ar, atmosfera terrestre), que tem impulsos edipianos pela mãe. Infeliz diante da realização alucinada do filho, Iemanjá cai e morre. No entanto, seus seios continuaram vivos e crescem desmesuradamente, dos quais começam a fluir os rios. Estes molham a terra, dão-lhe vida e formaram imenso lago (certamente o mar que ela representa), de onde, algum tempo decorrido, foram nascendo os orixás. (Martins, apud Lourdes Macena 1986: 354).

Esta citação de Saul Martins sobre a literatura da religião africana e Yemanjá é o ponto de partida para entender alguns aspectos sobre a origem dos orixás. De acordo com a tradição Iorubá, que versa sobre o princípio vital, responsável pela personalidade (Ori é a região da cabeça responsável pela vida e pelo desenvolvimento do corpo. A cerimônia de dar comida aos orixás, chamada de bori, serve como purificação, renovação das energias espirituais).

A festa de Yemanjá seria um tipo dessa cerimônia. De acordo com esta tradição, Yemanjá mora em Abeokuta, num rio que desemboca no mar, na África. De tanto chorar por seu filho Oxóssi, Yemanjá acaba formando com suas lágrimas um grande rio que leva hoje o seu nome, Yemoja.

Sobre a festa, Lourdes Macena descreve:

A festa de Yemanjá é uma homenagem prestada a mãe dos orixás nos cultos originados através da religiosidade afro-Brasilelira como o candomblé e a umbanda. É uma manifestação de fé e esperança que reúne milhares de pessoas todo o ano na busca de crescimento e proteção espiritual em vários Estados do nosso país.

O que há em comum na festa de Yemanjá com os textos? Ela tem características da pantomima, do gesto ou do melodrama? Como se processa e se constrói uma gestualidade ‘não elaborada’ do ponto de vista da consciência corporal? E porque a forma como eles cantam, traduz de certa forma uma ‘gestualidade vocal’ e uma estética tal que muitas vezes um ator com a melhor técnica possível não alcança? Qual o poder da expressão que um gesto pode causar? E isso frente a uma raiz africana tem algum impacto? Como todas essas questões podem influenciar no trabalho do ator?

São muitas as questões. Mas a mola-motriz é: O que seria gesto?

A compreensão do gesto

Gestus é o correspondente na língua latina daquilo que chamamos comumente de gesto. Isso seria uma determinada postura corporal que dá expressão a uma idéia ou sentimento, ao mesmo tempo em que os tornam visíveis para os outros. De alguma forma esta concepção habitual faz a gestualidade estar fundamentada pela natureza humana como expressão do mais íntimo e essencial de cada um. Mas o gesto é também uma expressão física de certas relações sociais. Parte do exposto aqui é resultado da pesquisa: O gesto entre dois universos: A noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuze, do mestre em psicologia e professor da faculdade de artes do Paraná, Francisco de Assis Gaspar Neto.

O trabalho de pesquisa deste professor chama a atenção pelo fato da noção do gesto ser uma expressão física de relações sociais. Foi observado isso na Festa e havia uma relação social ali. Aliás, várias.

Analogamente, é como a relação ator-público no teatro. Penso o gesto como algo que quer expressar algo e que, dependendo da cultura onde está inserido, ele tem uma codificação universal. Por exemplo, o gesto de pedir para fazer silêncio é automaticamente lembrado à nossa memória de um dedo indicador na boca de uma pessoa. É um código que se repete dentro de uma cultura e cria elementos de características comuns na sua ação e que finda sendo reconhecida por aquela comunidade.

Eis alguns pontos, dos quais tanto Roubine quanto Robson Corrêa Camargo, discorrem sobre.

Gesto, pantomima e melodrama

No 1º dia de aula discutimos sobre as diferenças entre mímica e pantomima, por exemplo. Na mímica pode ter fala. Já na pantomima, que é um gênero da mímica, não tem fala. É uma forma de expressão não falada, cênica e gestual. Ela tem importância no melodrama porque também contribui para a improvisação e foi o gênero formador do melodrama que tem sua origem associada à ópera e com o passar do tempo sai de um caráter mais popular - com pouca preocupação com os textos - e detém-se mais aos efeitos de cena, triunfando numa estrutura narrativa imutável: amor, infelicidade, vingança. É o que se vê hoje na teledramaturgia brasileira em geral.

O pesquisador desse texto aborda o gesto como um princípio dinâmico da representação e associa-o à pantomima e ao melodrama numa viagem histórica da formação do ator ocidental. Desde as primeiras civilizações até o século XIX. Sendo, portanto, todo este período influenciado por esta forma de fazer teatral.

Trata também das diferenças da pantomima na Grécia e em Roma e de como, ao longo dos anos, estas formas foram ganhando uma consistência própria. Um breve paradoxo importante citado no texto: “A pantomima recusa a distinção entre corpo e fala que se desenvolveu no teatro da palavra escrita representada”.

Paradoxo que pretendeu distinguir o teatro dramático da dança como sendo um somente responsável pela palavra e o outro como império do corpo. O texto também traz a arte do gesto total e da pantomima no treinamento do ator dando uma verdadeira ênfase ao estudo do gesto e da pantomima. Principio dinâmico da representação é um termo que nos traz a imagem de algo que tem movimento, tem corpo e que pode ser aprofundado.

O ator corporifica essa ideia para construir uma gestualidade mais potente, experimentando as diversas gestualidades no corpo e em busca do sentido do movimento.

Sobre o treinamento do ator, Bragaglia, citado pelo pesquisador Robson descreve que esse treinamento é composto por três fases: O grau de consciência profunda do fazer teatral e de sua conexão com a platéia; o desenvolvimento da gestualidade da personagem; e a arte de fazer-se entender ou contar a história sofrida pela personagem.

A arte do ator: Ator, Orixá, mobilizador do sagrado

Ao percorrer as linhas dos textos lidos é clara a tradição da pantomima. Em a arte do Ator, Roubine toca em pontos-chave sobre, como por exemplo, quando fala da atelana, do período romano, que era um gênero farsesco que prenunciava a commedia dell’arte.

A relação do gesto com o cômico e de como o gesto se alimentou disso por causa das farsas, da improvisação na rua, entre outros elementos.

Mas ele alerta: “Seria evidentemente ingênuo pensar que a questão do gesto se coloca apenas para o ator cômico”. O teatro criou formas ao longo do tempo de uma gestualidade própria, um teatro-movimento.

Do século XVII ao século XIX, gestualidade e realismo se entrelaçam e, ao mesmo tempo se afastam quando a pantomima deixa de ser um gênero autônomo. Isso devido a crítica ao academicismo desse período, por volta do século XVIII. A pantomima vai desaguando aso poucos no mar do teatro e se envolvendo com a interpretação da tragédia, oferecendo por um lado, um vasto campo de experiência ao ator e, por outro oferece cenas de imagens dando espaço à expressão paraverbial.

O que essas ideias tem em comum com a Festa de Yemanjá e todo seu ritual de cerimônia? De um modo geral, presenciar manifestações desse tipo amplia os leques de possibilidades da percepção e isso para o ator é fundamental. Permite também construir, cenicamente, algum trabalho que necessite de contato com a cultura popular. Diria também que é importante esse sentimento de alteridade e empatia para o exercício constante de se colocar no lugar do outro. Fazer reflexões mais robustas, mais encorpadas, unindo temas que se interligam por algum trilho. Tantos possíveis olhares e, nesse sentido, construir uma educação do olhar, sensibilizando-o e aproximando pessoas.

Pelas percepções geradas, o que mais fica claro é o poder da expressão que aquelas pessoas têm. É a impregnação cultural, o mito, a fé, o sagrado e o profano que fazem eles se reunirem para comemorar esta Orixá. Por isso, a forma como eles se expressam é tão verdadeira. Vem de dentro, da alimentação espiritual que eles têm no seu religare, na sua conexão com o cosmos.

É esta expressividade que o ator deve buscar em seu trabalho também. A raiz afro-descendente também causa um certo impacto sobre isso, pois a cultura exuberante oriunda da África é infinita, rica, diversa e quando se aglomerou ao povo que aqui já habitava fez nascer toda uma ramificação de religiões no Brasil que muitas vezes a negamos, mas inconscientemente a temos no dia-a-dia, nos mais simples hábitos.

Não basta executar corretamente, como aponta Roubine. Tem que ter um movimento emotivo. Tem que ter vida. A energia presente em contato com a profundeza das águas encanta e se apodera dos que estão em livre trânsito corporal. Por isso, tem momentos que parece exagero, pois é algo muito forte. Estamos lidando com algo invisível e espiritual.

Outro ponto é a teatralidade presente no movimento gestual da manifestação, tanto de quem assiste quanto de quem faz. Quem vê é movido pela percepção e recepção que os seus sentidos aguçam. Quem faz é movido pelo incorpóreo.

Isso tem um caráter teatral na medida em que há uma relação com o ritual, a narrativa e o jogo propostos entre eles nessa ‘encenação’. Além disso, a questão do exagero chega como algo natural e não como algo estudado e composto para uma possível "representação". Não é uma representação, é criação de realidade. São corpos em chama. Nós enquanto atores, temos que nos orientar quanto a isso e encontrar nossos caminhos.

Para a festa de Yemanjá, fica a alegria, a sensação dos fluxos em encontros. Laroiê, Exu, Ogum, Xangô, Oxossi, Virgem Maria, Nossa senhora da Assunção, Jesus de Nazaré, Padre Cícero ou Deus, se quiser.

“Somos zeladores de orixás, somos diretores espirituais”, disse uma cantora no palco cantando Afoxé.

A nossa sociedade ainda não aprendeu a lidar com a profundidade de determinados fatos nem das tradições. Não somos educados para isso. A nossa educação é outra. É cartesiana.

Mas precisamos, enquanto educadores também, exercer um papel sobre esses olhares e quebrar tabus. Viva Yemanjá! Viva seus orixás com seus peculiares gestos! Viva o povo do candomblé e da Umbanda! Somos todos católicosapostólicosromanosprotestantesespiritas e macumbeiros. Assim somos enquanto povo. Somos esta imensidão chamada Brasil.

Fica um legado gestual a ser estudado e compreendido pelo ator. Por todos nós. Iorubá. Yemanjá, mãe, rainha das águas, lave nossos percursos todos os dias e purifique-nos com teu banho.

*Texto apresentado à disciplina de Interpretação I - ministrada pelo prof. Tomaz de Aquino - do Curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. Para o blog, o texto sofreu algumas alterações do texto original. As impressões contidas nesse trabalho foram geradas a partir de uma aula de campo no dia da festa de Yemanjá em agosto de 2011, na cidade de Fortaleza-Ce. Aqui, a festa é comemorada no mesmo dia em que se comemora Nossa Senhora da Assunção, padroeira da cidade. A aula foi em parceria, envolvendo a disciplina supracitada e as disciplinas de 'Teatro e Cultura Popular' e 'Danças Dramáticas e Sociais - ambas ministradas pela prof.ª Lourdes Macena.

**Bibliografia consultada: Gesto, pantomima e melodrama – As técnicas de interpretação do ator na pantomima e sua influência na construção da arte do século XIX (Robson Camargo); Dicionário de símbolos (Jean Chevalier); A arte de não interpretar como poesia córporea do ator (Renato Ferracini); O potencial turístico da festa de Yemanjá em Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (Maria de Lourdes Macena); O gesto entre dois universos: A noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuze (Francisco de Assis Gaspar); disponível em: http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/Arquivos2009/Pesquisa/Rev_cientifica4/artigo_Francisco_de_Assis.pdf; Melodrama, folhetim e telenovela: anotações para um estudo comparativo (Luiz Flavio Porto) disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_15/_flavio_porto.pdf; Introdução à análise do teatro (Jean-Pierre Ryngaert); A arte do ator (Jean Jacques Roubine).

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O ator-performer e a dramaturgia do desejo

As recordações borbulham. Elas brotam, naturalmente. Recordo-me da experiência de imersão coletiva "O ator-performer - Dramaturgia do Desejo", um processo intensivo de pesquisa e criação artística sob a Direção de Silvana Abreu.

Acredito que isso que escrevo agora é uma mistura de ficção com realidade, de poesia com prosa. Toda essa provável mistura são reflexos de uma experiência que só pôde ser vivida graças ao encontro, à arte do encontro.

As possibilidades de se viver diferente, de encontrar - num horizonte qualquer - a imaginação simbólica de sua existência. Acredito ser essa, uma das grandes missões do artista. Para o ator-performer, adentrar no campo minado do perigo e da sorte. Um guerreiro que segue diante dos desafios colocando seu corpo à xeque-mate. Um corpo que é movimento, acontecimento, fluxo. Um corpo-em-vida¹, em devir. Por isso, investi-lo, buscá-lo. Sê-lo.

São Francisco Xavier, interior de São Paulo. Cinco dias de construção. Cinco dias de arte. Milhões de dias de vida. Um teatro de carne, pele e osso². Um teatro que irradia e contamina. Num mergulho dos nossos desejos, construir uma dramaturgia própria, que não seja só princípio e construção da obra, mas que traga à tona a força da sensação da arte, provocando fricções, tendo o desejo como potência de afirmação da vida e fortalecendo o teatro na criação de realidade, no aqui-agora. Afetar e ser afetado. Na dramaturgia do desejo é possível descobrir um vocabulário próprio de expressão física e emocional, pois o corpo responde ao que ele mesmo pede: o próprio desejo. Não há vida sem ele.

E, para além disso, celebrar o rito - individual e coletivamente - num ambiente permissivo, reunindo pessoas com objetivos comuns, mas com desejos únicos.

Já se passaram alguns dias após a experiência. Estes foram necessários para voltar um pouco ao cotidiano, reconhecendo nele também, suas poesias e metáforas. Embebendo-se um pouco da luz de Apolo, equilibrando-a com a sombra de Dionísio. Quis muito escrever algo sobre o workshop, mas ainda estava tudo muito dilatado. Então, esperei passar uns dias e falar um pouco, em linhas gerais, sobre minhas impressões e traços de tudo o que vivi.

Era uma alegria acordar mais cedo e ir trabalhar naquela sala. O frio petrificava um pouco essa alegria, mas o desejo não. Sempre por volta das 7h, mesclava o que estava aprendendo com os fluxos de criação que surgiam. Entretanto, havia um grande problema: Minhas companheiras de quarto sempre acordavam com o despertar do meu celular, menos eu! Uma delas, em específico, ficava 'p' da vida. Era engraçado (Risos). Todos os dias foram assim, vivenciando o máximo possível, pois sabia que ia passar rápido e forte, como uma lapada de cana.

Durante o período, uma alimentação regrada, sem carnes. Salve, salve aquelas mãos mágicas da cozinha. Sonho com aquela coalhada matinal todos os dias! Além disso, uma paisagem que descia sobre os olhos um eminente entusiasmo. Um ambiente extremamente propício à criação. A energia de cada um, do lugar, o barulho da cachoeira, a natureza. Enfim. O banquete era farto. Banquete de arte, de conhecimento, de alimento. Foi mágico!

A cada dia vivíamos coisas diferentes. Consumíamos intensidades diferentes. E, já no primeiro dia de apresentação, coloquei meu nariz de palhaço e disse: É agora! Ao fim da apresentação, a Silvana me pediu para eu colocar o nariz novamente e também pediu que eu dançasse. Senti meu corpo vibrar, um Ianomâmi. A poesia do riso eclodiu, provocou, alterou, modificou. Pude perceber o palhaço como um ser universal, não importando as culturas em que ele se encontra, nem tão pouco se ele é assim ou assado. Importando, de fato, a conexão que o "paiaço" (assim que costumo chamar) estabelece através da conquista do riso. Falando (pelo, de, com, através do,) coração com a condição humana da queda. Este ser que elege - inevitavelmente - como postura e crítica a inerência do riso, fazendo arte com a tragédia, brincando de rir com o trágico.

Ao longo do curso, foram muitas vivências que nasciam de trabalhos corporais, éramos uma fábrica de edificação corpórea. Éramos Como o tao. A solidão tinha uma lugar distante. Era uma "solidão pública", como dizia Stanislavski.

Na minha segunda apresentação, preferi descobrir outros desejos que dialogassem com aquele espaço, com as pessoas e objetos ali presentes. Assim como o presente muda constantemente, o espaço também. Queria esse efeito. "Cuando se crea un espacio su sugnificado cambia constantemente, porque él presente también cambia constantemente." (BROOK. In: Él espacio abierto). Quis uma 'mini-itinerância' com o público dentro desse contexto e a exploração do texto a partir do que venho pesquisando/trabalhando enquanto ator. Era necessário, talvez, investigar as sonoridades do espaço, já que venho pesquisando uma dramaturgia de sons (vocais ou não), uma dramaturgia sonora³. Senti que era preciso uma outra música e descobri um texto suavemente erótico que se encaixava com o que já vinha buscando nesse curto prazo de tempo. O texto era de Catharina Ruffo e ele já trazia a ação, a intenção em si. Cabia a mim experimentar esses tons. E foi muito interessante. Num momento da cena, uma arara evocou seu cântico e brincou comigo, fazendo festa com todos os presentes. Sensação impagável!

"Se utilizo o termo guerreiro, penso novamente em Castaneda mas todas as escrituras também falam de guerreiros. Encontra-se tanto na tradição hindu, como na africana. É alguém que é consciente de sua própria mortalidade. Se tiver que afrontar os cadáveres, os afronta, mas se não tiver que matar, não mata. Entre os índios do novo mundo se diz dos guerreiros que no campo de batalha tem um coração terno, como uma jovem donzela. Luta para conquistar o conhecimento, porque a pulsão da vida se torna mais forte, mais articulada nos momentos de grande intensidade, de grande perigo. No momento do desafio aparece a ritmização das pulsações humanas. O ritual é um momento de grande intensidade. Intensidade provocada. A vida então se torna rítmica. O performer, sabe ligar o impulso corpóreo à sonoridade (o fluxo da vida deve articular-se em formas). Os testemunhos entram então em estados intensos porque, dizem, estão sentindo uma presença. E isto, graças ao performer que é uma ponte entre o testemunho e algo. Neste sentido, é pontifex, fazedor de pontes." (GROTOWSKI. In: O performer).

Eis a imagem do guerreiro. Um homem da ação. O ator-performer é homem da ação, um sacerdote e está imune de qualquer gênero estético. O Performer é um estado, uma presentificação do ausente. Sua técnica deve estar aliada a seu favor, fluir naturalmente consigo mesmo. A técnica como libertação. Assim, pude ver a mímica por outros ângulos e o que ela provoca. Experienciar a transição dramática no âmbito dessa técnica. No âmbito da minha poética, pois sendo o ator um poeta do movimento, é somente acessando-o que ele - necessariamente - arquiteta sua arte.

Pude ver o encanto de todas as idades. Os contextos dramáticos, a experimentação da imaginação criativa, as escolhas. Escolhas e imaginação, traçando caminhos, observando os corpos, as potencialidades, o movimento preenchido do mais alto sentido. E, evidentemente, o pensamento operando na realidade, no ato, no crível.

No adestramento do ator Nô, a dedicação absoluta é algo evidente por si. Zeami, nos traz a imagem da flor, que brota da nossa força espiritual. Corpo, mente e espírito. É a construção de uma longa estrada de estudos. Uma imensa jornada.

Nesta jornada fomos construindo produções de sentido ao emanar desejos, vontades. A presença do desejo como latência de criação e pulsação, expandindo a percepção do corpo que, por sua vez, explode em movimento e detona dinâmicas. Assim, íamos ligando as teias de nossa própria história, construindo uma dramaturgia orgânica, vibrante, uma dramaturgia do desejo.

Quais as ameaças que o futuro encerra, a partir de agora? A continuidade dos passos que irão fortalecer, cada vez mais, o meu ofício, o ofício de ator, performer e palhaço. Coragem sempre! Evoé para todos!

¹Em www.silvanaabreu.com;

²Zeami, em seus tratados sobre o teatro Nô: "Na representação do Nô há três elementos básicos: Pele, Carne e Osso. Os três não são quase nunca encontrados juntos no mesmo ator. Quando se trata de explicar os elementos da Pele, da Carne e do Osso em termos de Nô, o que pode ser descrito como Osso, representa aquela força artística excepcional que um ator dotado mostra naturalmente na representação e que chega a ele por meio de sua habilidade inata. A carne pode, sem dúvida, ser definida como o elemento visível numa representação que surge do poder das habilidades do ator obtidas pelo seu domínio das duas artes básicas de canto e dança. A pele, por outro lado, pode ser explicada como uma maneira de sossego e beleza na representação, obtida quando os dois outros elementos são consumados inteiramente. Colocando de outra maneira: quando se considera a arte que vem da Visão, a arte que vem do Som e a arte que vem do Coração, pode-se dizer que a visão deveria ser igualada à Pele, o Som à Carne e o Coração ao Osso."

³ In Queimar a casa.

Agradecimentos: Silvana Abreu, Marina Athie, Instituto Gaia Revida, todos os participantes do workshop O ator-performer - Dramaturgia do Desejo. Em especial a Patrícia Zapletal e Catharina Ruffo, minhas companheiras do quarto 11. À Tacira Coelho, pelos risos e caretas. À Camila Alves, pelo carinho. À Mario Filho , por me apresentar o caminho do riso. À Danilo Pinho, que está na Bahia de todos os santos. À todos que acreditam na arte, a minha tia Joselma por ter me proporcionado essa vivência, aos amigos, aos grandes mestres do teatro e do ator-criador. Aos que, de algum modo, ocuparam a posição do líder que compartilha conhecimentos - portanto, meus mestres -, À vida.

www.silvanaabreu.com

*Foram consultadas as seguintes fontes/livros: O performer (Texto de Jerzy Grotowski, Tradução de Sidney Souto); A arte secreta do ator (Eugênio Barba); Teatro: Leste e Oeste (Leonard C.Pronko); Uma introdução ao método Margolis: Uma abordagem dinâmica para o treinamento do ator (Texto de Kari Margolis , Tradução de Danilo Pinho); Queimar a casa - origens de um diretor (Eugênio Barba), O ator invisível (Yoshi Oida), El espacio Abierto (Jean Guy Lecat). Obs: Não consigo justificar as linhas do texto nesse blog!!!!

Guilherme Bruno. twitter.com/GuilBruno. https://www.facebook.com/guilherme.b.delima

quinta-feira, 28 de junho de 2012

A cidade como dramaturgia - que cidade é essa?

As cidades são um complexo organismo vivo preenchidas de materalidades e relações sociais. Preenchidas do excesso e da falta humanas. São um verdadeiro exemplo de como o homem, no transcurso de sua existência, pôde apreender caminhos de esquadrinhar o espaço e construir uma gama de equipamentos e artefatos- segundo determinadas técnicas ao seu alcance e em sua época- necessários à sua existência. Assim, as civilizações foram ganhando vida própria e se condensando nesses moldes urbanos tais quais conhecemos hoje: as cidades. Apesar de que, ambas as palavras - cidade e civilização - têm a mesma origem. Que cidade é essa? Ou melhor: Que cidades são essas? Pois é como se tivéssemos dentro da mesma cidade várias outras cidades menores, vários pueblos, cidadelas; onde independente do que aconteça, todos estes níveis se tocam em algum ponto. Como habitante deste lugar, desta Fortaleza tão sedutora, despojada, não tive como não me perguntar que cidade é essa, tendo em vista tudo o que vem ocorrendo com nosso lugar e abalando nossos sentimentos de pertença; aumentando muitos dos nossos paradoxos. Destituindo-nos, muitas vezes, de nossas idiossincrasias. Uma verdadeira cronopólis que ergue e destrói ao mesmo tempo, vítima da constante imposição global de expansão e crescimento das cidades e de uma globalização perversa; calcada na tirania da informação e do dinheiro. Para responder a estas e outras centenas de perguntas, recorremos à potência mítica do Oráculo de Delfos e fomos às ruas benfiquianas, na praça da gentilândia, nos entornos do IFCE. Este exercício me possibilitou, sem sombra de dúvidas, enxergar melhor esse lugar que eu piso todos os dias, que eu habito, que eu me relaciono. Fez com que eu ampliasse meu raio de percepção sobre espaços já habituais, quase mortos pelo dia-a-dia e, encontrasse novos sentidos para mim mesmo, por que não dizer, novas formas simbólicas? O exercício me fez repensar a performatividade do ator em cena, na rua, sem uma necessidade de teatralizar, mas sim de exercitar uma melhor naturalidade, uma sutileza de gestos e movimentos, sincronizados na esfera real e cotidiana da cidade. Obviamente, que interferindo artísticamente nela sem deixar de lado as escolhas estéticas desta intervenção. Além desse, tive inúmeros outros insights que foram discutidos com o grupo após o exercicio. Logo, acredito, que temos que exercitar todos os dias a nossa relação com este lugar e descobrir nós mesmos novas possibilidades no ambiente urbano, novas dramaturgias. A cidade é pura dramaturgia, envolta de personagens que compõem seu universo. A rua, um espaço da cidade, é repleta desses 'personagens'. Basta observar o Benfica: A Gorete do Guaraná, o Assis e seu Botequin, o Chaguinha, o Cid, o Eudes, os vendedores de tapioca, o senhor que faz jogo do bicho na calçada do IFCE, enfim. Isso em se tratando só de personagem, mas ainda há as histórias, as casas, as praças, os conflitos, as polaridades. Em seu dicionário de teatro, Patrice Pavis, descreve que: "a Dramaturgia, no seu sentido mais genérico é a técnica (ou a poética) da arte dramática, que procura estabelecer os princípios de construção da obra". A dramaturgia da cidade é uma dramaturgia que produz a si própria, tem um ato de imanência a ela mesma e é esse ato que temos de atingir sempre experimentando a cidade e ampliando os diálogos com seus espaços, seus habitantes, enveredando por novos acontecimentos e novos vetores para o teatro. Desta maneira, trazendo a ruptura do cotidiano, do mesmo, da similitude e da semelhança, provocando a experimentção da diferença. Que cidade é essa? Que dramaturgia é essa? Não é somente a academia que irá nos dizer. É a rua. É a própria cidade. É todos os sorrisos e lágrimas que aqui, com nossa nordestinidade, reside. Finalizo com uma poesia que fiz um dia desses, andando pelos arredores da Av. 13 de maio, em plena greve dos policiais militares em nossa Fortaleza. Filosofei com as pernas e andei pela cidade. Pela 1º vez vi uma mulher entrar no pensionato feminino. Vi também novas pichações em meio ao descontrole visual urbanóide da megalópole cosmopolita. E um personagem que disse o que iria fazer se ganhasse alguns milhões. Na verdade a cidade me fez enxergar. E vi as mesmas coisas de sempre como a fumaça, os carros, as pessoas sem recorte. O que enxerguei foi o que eu já via, mas o caos me trouxe outro 'óculos social'. Texto escrito em 20 de janeiro de 2012 para o módulo 'A cidade como dramaturgia', das escola pública de teatro da vila das artes-ce. Foram consultados: O tempo nas cidades (Milton Santos; Por uma outra globalização (Milton Santos); Dicionário de Teatro (Patrice Pavis); A cidade como dramaturgia do teatro de "invasão" (André Carreira).

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Cru-el: Tessituras sobre o corpo sem órgãos de Artaud

Sangue, ossos, pele, olhos, ânus, vagina, pênis, rins, esôfago, intestino, pulmões, estômago. Para que nos servem os órgãos? Eles estão a serviço de quê? Do poder? da potência? Certamente um corpo sem órgãos transcende a qualquer demanda. Seja ela social, cultural, histórica, capital. Ele não obedece a nenhum rigor anatômico, funcional, clínico. Artaud declara guerra a seus órgãos e a essa subserviência do funcionamento do corpo e a hierarquização dos órgãos. De um corpo bem organizado, de um corpo como máquina cartesiana arquitetada e projetada para a padronização do comportamento, reduzido a regimes de modos de vida. Regimes pseudo-sensíveis. Regimes físicos da felicidade corporal, por exemplo - a dieta, o prazer, a inversão da estética, a produção de corpos voltados para fins, objetivos. O corpo, então, deixa de acontecer, deixa de produzir-se a si mesmo, perde potência, fica fragmentado, escoa pelo ralo. Não é capaz de experimentar e experienciar intensidades, construir percepção corpórea. A vida nas nossas sociedades atuais não suporta a intensidade, o estado intensivo do corpo e do pensamento. Há o tempo todo modos de poder que camuflam o corpo, os afetos, o pensamento. Uma sociedade 'Big Brother' de espionagem do sujeito. Nesse sentido, para Artaud, o corpo tem um imenso 'fundo falso', relicário de preciosidades. Atravessado por todo um conjunto sensível que se amplia ao se produzir, ao se desierarquizar-se de seus órgãos, (des)capturando-os. Um corpo presente numa crueldade, numa metafísica. A crueldade entendida mais profundamente. Uma radicalização da vida pela crueldade. O exercício da crueldade, aqui, se passa num horizonte muito mais sutil. É uma 'violência da calma' (Viviane Forrester). Ele nos diz: "No plano da representação, não se trata dessa crueldade que podemos exercer uns sobre os outros, despedaçando-nos mutuamente, serrando anatomias pessoais ou, como os imperadores assírios, mandando sacos de orelhas humanas, narizes e narinas bem cortadas pelo correio, mas sim da crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer sobre nós. Não somos livres. O céu ainda pode cair sobre nossas cabeças". Esse enunciado pode chocar, mas na medida em que desconstrói o corpo enquanto mero catalisador de operações sócio-culturais, dota-o de produção de sentido. Um corpo que dialoga com uma necessidade existencial, melhor ainda, um corpo que é existência; reintegrando o físico com o psíquico. Assim como o teatro enquanto comunhão viva e irradiante-irradiadora, o corpo é (re)dimensionamento sensório-perceptivo. Pensamento-bomba, pensamento-fecal, escrita do sangue. (Daniel Lins). Artaud e seus duplos excedem as bordas teatrais - 'tudo que atua é uma crueldade' (Artaud). Vão além e, na medida em que, constituem pensamento numa loucura que também é conhecimento, erguem uma filosofia do fogo, da carne, do sangue, das vísceras, dos excrementos, das fezes, do corpo sem órgãos. O teatro-corpo como uma peste delirante que grita e sussurra todos os desatinos possíveis do acontecimento, do encontro e da celebração. Desatinos do humano. "Podem me amarrar, uma camisa de forças não quer dizer nada, me metam numa camisa de forças, por que os órgãos mesmo não servem para nada, pra que servem meus órgãos?" (Artaud). Para ele, os órgãos não servem pra nada. Guilherme Bruno. Foram consultados: O artesão do corpo sem órgãos (Daniel Lins); Antonin Artaud: O corpo sem órgãos (Nara Sales); O teatro e seu duplo (Antonin Artaud); Palestra o corpo sem órgãos ministrada por Luiz Fuganti.

domingo, 6 de maio de 2012

Afrodites e Helenas

Profusão que se espalha numa saudade que brota aos poucos. Afrodites perdidas ao longo do tempo e que somem feito aqueles ninjas de filmes japoneses e por isso vez ou outra o coração entra em descompasso e a gente fica um pouco perdido. É abrir margem para construir uma mitologia própria. Uma história que se repete e se difere. Essas afrodites têm o poder de seduzir, mas não é só isso. Elas também são como Helenas, aquelas mulheres bem fortes e à frente de seus tempos. Enfim, a figura da mulher é essencial ao mundo. E mais que isso, acalenta em seus seios a maternidade e como o sopro divino, dá luz à vida. Ao mesmo tempo, elas podem sumir do mapa, podem descartar cartografias e virar o mundo pelo avesso. Podem morrer fisicamente e deixar-nos sem chão. Sem superficie. Mulheres são como mães do universo, são signos, e são sempre, mulheres.

Lá estava eu. Eu estava lá. Estava. Lá. Enrosquei, aticei, dobrei, encurvei, virei, olhei, enxerguei. Enxerguei aquilo que já via e debrucei-me sem diletantismo. A taça derramava espumas de vento. O brinde sempre me foi algo distante, porém ele sempre apareceu e, mesmo que efêmero, ascendeu marcas e fagulhou chamas. Estratificou espessuras de espuma. De bruma, de brancura, de brandura. Eu sempre estive lá. Lá, é um lugar doce, é quase o meu lar, doce lar. Lá é um lar e o lar é lá. Ladainhas a parte, o lá é um lugar que me deixa bem e tranquilo, suspirando feito corpo trêmulo após uma transa. Ofegando. Eu gosto de lá, de estar lá. Vamos pra lá? Um cantinho pequeno que se apresenta gigante e que a gente pode confiar. Pode-se projetar. Cada um tem um la(r) dentro de si. Basta nutrir-se do que é inteiro, mesmo que seja metade.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Gandaia

Foi no acorde do acordar que soou a primeira nota do dia. Como música. Como melodia. Uma leve sensação de ser criança. Correndo por dentro feito algo que voa, correndo que nem o bando da molecada de quando era pequeno. Sim, é preciso correr, gandaiar. Gandaiar feito menino e correr tão velozmente até os pés baterem na bunda. Numa carreira distante, trepidante. Chegar na praia foi alegria só. De vez em quando fitava o olhar para o mar mergulhando em mim mesmo e em cortejos de imagens que sondam meu passado-presente-futuro. O negócio é que quando a gente se enrosca nas ondas, a gente fica tonto feito peão jogado no terreiro. Fica querendo voar sem ter asa. E beber na sede que sacia a irrefutável alegria do cotidiano. Reinventando o cotidiano e cobrindo-lhe de novas conjecturas, novos acontecimentos. Daí, é fácil olhar pra o céu e ver as nuvens garimpadas em estufas que se desdobram quase a um palmo da mão. Como algodão doce que gruda nas mãos. Correr para os braços do mar. Do mar, de tudo que é límpido. Gandaiar em risos, passear em campos de papoulas. Passear sobre cada segundo do que a gente chama de... felicidade. E gandaiar, pra que a vida dê lugar ao novo e encontre novos sentidos.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

(Des)água

Sentar-se e ouvir a língua de uma canção. Deixar-se sedimentar por ela e correr com ela solto no vento. Que nem água quando cai da cachoeira e desagua pelo leito do riacho. De olhos fechados projeto imagens, crio laços memoriais e me perduro feito tempo em pó. Num silêncio trancado às sete chaves, grito dentro dessa morada que a gente inventa: o eu. A música já acabou, mas que nem água ela ainda continua caminhando pela minha pele e provocando palavras como gotas d'água. Desaguo e desemboco, sempre que possível, numa doce canção.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Grão.

Grãos de areia se perdem na água turva. Constroem castelos, arquitetam tempestades de ventos. E eu danço como pequenino na imensidão, esboço movimentos com asas de bem-te-vi e cores de beija-flor. Beijo o sussurro da boca envaidecida de mistérios e ergo sonhos em horizontes distantes. Na areia. No mar. Neste chão que habita em cada um de nós. Com apenas um grão se engradece a alegria. Com uma tempestade dele, faz-se o castelo da vida.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Palavreado.

Ficar longe das palavras é como ficar longe de si mesmo. As palavras são como fortes flechas, potentes armas que nos afetam imediatamente. Sabemos que elas nos acertam. Mas afinal o que é uma palavra? - A palavra? A palavra... é o humano. O humano é palavra. Que é corpo. Que é corpo-palavra. Corpo-palavra-pensamento. Corpo-palavra-pensamento-sensação. É tudo... a palavra é tudo. Quase tudo, porque se fosse tudo não era palavra, pois há ainda todo o espaço infinito que está por detrás dela. Se ela for tudo, ela não vai alcançar o hiato do silêncio.

terça-feira, 20 de março de 2012

Tragédia grega

Adentrar no universo da civilização grega e vasculhar sua história é sempre um fascínio. É penetrar no imaginário de todo um modo de vida regido por suas características imanentes a ele mesmo. Características essas que inundaram toda a formação do pensamento ocidental. Entretanto, não cabe aqui uma análise destas características, mas sim, a partir de um ponto de vista – o do encontro do teatro com a filosofia – traçar um olhar sobre a tragédia grega.
Para tanto, vamos nos remontar as origens do teatro. O que é um pouco delicado, na medida em que, estamos enveredando por milhares de anos. Por volta do século V a.c. Ressalto aqui, que apesar de existirem indícios de que o teatro surgiu no Egito, tomarei como ponto de partida o começo do teatro na Grécia.
O teatro nasce do ritual e do mito. É daí que o teatro desabrocha como flor que se metaforiza no espírito de cada um de nós, revelando a tentativa humana de mergulhar, pela imaginação, nos mais remotos esconderijos que permeiam o mistério da existência. Captar o sentido do mito é compreender que ele designa uma história verdadeira, que sua raiz é extremamente preciosa, sagrada e significativa. Uma história verdadeira de criação do homem, do mundo, de multiplicidades de eventos que se perderam numa memória cronológica, mas se preservam numa memória mítica e em arquétipos diversos.
A consciência mítica desvela que tudo deve ter tido uma origem. Se ela ficou sombreada pelo tempo não quer dizer que a imaginação não possa operar sobre isso. A temporalidade dos acontecimentos pouco importa. Interessa o fato de que eles se repetem: por isso são perenes. O mito nada mais é do que isso, essa história perene dos acontecimentos que são eternos porque se repetem. Assim, o homem vai participando de uma eternidade mítica, pois para o homem é preciso buscar algo que está fora do universo racional, porque este não consegue dar conta de todos os dados da realidade.
E entre os gregos, a tragédia proveria de toda essa universalidade que transcende a figura humana na dupla via entre o sonho apolíneo e a embriaguez dionisíaca porque o teatro é a arte do encontro entre Apolo (imagem, luz, sonho) e Dionísio (música, embriaguez orgia). No culto ao deus Dionísio, na festa das colheitas das uvas regadas a vinho e a cantos ditirambos, a embriaguez se instalava e permitia o distanciamento do real, abrindo portas para outras dimensões de realidade e revelando os devires possíveis da diferença.
Sobre a questão do ritual, Patrice Pavis, em seu Dicionário de Teatro nos traz:
Concorda-se em colocar, na origem do teatro, uma cerimônia religiosa que reúne um grupo humano celebrando um rito agrário ou de fertilidade, inventando roteiros nos quais um deus morreria para melhor reviver, um prisioneiro é condenado à morte, uma procissão, uma orgia ou um carnaval eram organizados. Entre os gregos, a tragédia proveria do culto dionisíaco e do ditirambo. Todos esses rituais: trajes dos oficiantes e vítimas humanas ou animais; a escolha de objetos simbólicos: o machado e a espada que serviram para consumar os assassinatos, estão julgados a seguir e, depois, “eliminados”; simbolização de um espaço sagrado e de um tempo cósmico e mítico, de outra natureza, pois que os dos fiéis. (PAVIS, p. 345, 1999).

Aristóteles, grande admirador da tragédia grega e definidor da mimese não como um valor artístico – sentido a que dava Platão a sua ideia de mimese – mas como um valor de verdade, estabelece e analisa na obra A poética, o modo de ser e de proceder da tragédia.
Esta obra ultrapassa os limites teatrais e se interessa por muitos outros gêneros além do teatro resultando numa estética secular verossímil que começa a declinar como modelo a partir do século XVIII e principalmente no século XX, tornando-se menos normativa e rejeitada, por exemplo, até o século XV pela Europa medieval, que mais tarde a concebe como ferramenta de estudos presentes nas escolas de arte junto à época do Renascimento.
Segundo Aristóteles, as artes poéticas provocariam a catharsis, isto é, a purgação das emoções dos espectadores. Isso ocorre porque o ato do herói que põe em movimento o processo que o conduzirá à perda (hamartia); o orgulho e teimosia do herói que persevera apesar das advertências e recusa esquivar-se (hybris); e, o sofrimento odo herói que a tragédia comunica ao público (pathos). Pelo sofrimento o herói constrói seu comportamento íntimo e sua atitude (praxis), onde se origina e sobre a qual se organiza a ação dramática. E toda a questão dos heróis relaciona-se sempre ao rompimento de uma ordem divina.
Do mito divino com o mito heroico, tem-se uma lógica: os heróis presentes nas tragédias – como Édipo, por exemplo – eram a ligação entre o mundo divino e o mundo humano, simbolizando a existência humana naquilo que ela tem de mais profundo. Segundo a Prof.ª Dra. Sara Lopes, em artigo denominado Mito e teatro grego, “Colocar os heróis no palco, frente aos deuses e o destino, exaltava os ânimos e convocava os cidadãos a uma nova maneira de pensar e de agir”.
Assim, os cantos ditirambos que se realizavam em coros – narrando aspectos felizes ou dolorosos da vida de Dionísio, acabou se definindo como trágico e dele se originou a tragédia: uma representação viva que narra os fatos acontecidos no plano mítico. Esse coro cantava em uníssono, mas logo depois foi se desmembrando em perguntas e respostas, mesmo sem caráter dramático. A figura do corifeu – uma espécie de condutor do coro – coordenava esses diálogos que foram surgindo. Em algum momento uma voz se distinguiu do canto coletivo, tornando-se uma unidade autônoma e recebendo as respostas do coro: surgia o hypokrites, o ator protagonista, simbolizado por Téspis. Representando, o ator provocava sentimentos no coro popular que, então, transformava-se em platéia. Todos lhe respondiam, concordando ou discordando, cantando com o coro.
Aos poucos foi aumentando o número de atores, fixando o número de três atores no centro da representação. A tragédia começa a declinar quando Eurípedes suprime a música do teatro. Pode-se dizer que a partir de então se formaliza o drama.
Aristóteles, assim define a tragédia:
A tragédia é a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada, distribuídos os adornos por todas as partes, com atores atuando e não narrando; e que, despertando a piedade e temor, tem por resultado a catarse dessas emoções. (ARISTÓTELES, p. 43, 2000).

Em relação a essa linguagem adornada, ela diz respeito ao ritmo à harmonia e ao canto. Por fim, ainda segundo ele, são seis os elementos que constituem, necessariamente, a tragédia: a fábula, os caracteres, as falas, as ideias, o espetáculo e o canto.
Ao mesmo tempo, sob um outro aspecto da origem da tragédia, temos Nietzsche, que vai lançar mão do Nascimento da tragédia, escrito no final do século XIX, para tentar solucionar o mistério do surgimento e do súbito desaparecimento da tragédia grega. Através da música formula noções que celebrizam a dualidade dos princípios artísticos do apolíneo e do dionisíaco, já explanados brevemente anteriormente.
Segundo o filósofo alemão, o cerne da tragédia grega é a união entre o mito do herói e a esfera musical dionisíaca, representada esta primitivamente pelo coro de sátiros, o cortejo que em cantos e danças evoluía em adoração ao deus Dionísio. Deste modo, o herói trágico está posto sob a influência do mundo dionisíaco e seria levado a experimentar as mais elevadas e mais fortes emoções passíveis ao humano. Nietzsche enfatiza a importância do coro no nascimento da tragédia e faz-se necessário elucidar isto com suas palavras: “Aquelas partes corais com que a tragédia está entrançada são, em certa medida, o seio materno de todo assim chamado diálogo, quer dizer, do mundo cênico inteiro, do verdadeiro drama”. Portanto é o coro que estimula o desenrolar da narrativa do herói.
De passagem, Nietzsche tece um pensamento que une de modo condensado aspectos da mitologia grega e da arte jogando com os deuses - enquanto formas de poder e divindades - viajando entre os estados de inconsciência do sonho e da embriaguez fazendo uma crítica a Sócrates como responsável pela decadência da tragédia grega, pois ele fez os gregos desviarem a atenção da tragédia para o otimismo da sua filosofia.
As tragédias gregas atingiram seu apogeu no final do século V a.c, tendo seu momento mais importante de representação nas grandes dionisíacas (Festival em honra a Dionísio). É tida por muitos como a obra-prima da Antiguidade, mas na atual cultura ocidental de um modo geral, perdeu espaço para novas formas de representação e novas (re)articulações de orientações culturais diversas em novas criações que se processam nas relações entre diferentes. Ou entre semelhantes. Tanto internamente nas sociedades, como na inter-relação entre elas.
Por outro lado, constituem uma alçada fundamental para entender a origem do teatro e sua relação com a mitologia grega, com o rito e com essa capacidade mais aguçada da Antiguidade e das primeiras civilizações em enxergar o mundo de um outro modo, de um jeito distinto do homem moderno. Numa sociedade grega cheia de paradoxos e presa ao apreço do belo e da eloquência: Duas características que percorrem até os dias atuais – do ponto de vista filosófico – as artes poéticas.

Guilherme Bruno.
Foram consultados os seguintes livros: A poética (Aristoteles), o nascimento da tragédia (Nietzsche), os filósofos e a arte (vários autores); apostila de história e teoria do teatro do IFCE - tradução de Marcelo Costa; Dicionário de Teatro do Patrice Pavis; Mito e realidade (Mircea Eliade); O mito e o teatro grego (Sara Lopes).

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Da cibernética à lógica do capital: O homem-máquina e a dominação sem sujeito - pontos de encontro entre o simulacro e a realidade.

Compreender Matrix é poder dialogar com a dimensão da lógica do capital, com a forma-dinheiro e com o que move o enigma da contradição em movimento da natureza genealógica do capital. O mundo-máquina que impõe, exclui, inclui e seleciona. Que a partir de dispositivos realimenta a informação no sistema e confronta suas informações com as informações do própria sistema; compreendendo o sistema como a "associação combinatória de elementos diferentes" (MORIN). o confronto dessas informações gera pane e tudo entra em colapso. As máquinas adquirem dinâmicas próprias de existência real-virtual e o homem se torna mero fornecedor de energia. Assim, Neo é levado a conhecer a Matrix e a fazer escolhas que o colocam na ordem de um ser moral. Que o oferecem uma nova zona de experimentação do real, da verdade. Quem oferece? A classe dominante e os interesses que dela derivam? Ou a própria noção interna de que é o desejo que move a escolha? Seres-máquinas. E dizem: Siga o coelho branco. O coelho é o símbolo da longevidade, do alcance da liberdade. Liberdade de quem? Então Neo (O novo, o escolhido, o super-homem bem ao modo de Nietzsche) recai sobre Morpheus (o Deus grego dos sonhos que se apresenta aos adormecidos durante o sono) através de Trinity (do inglês, Trindade. O mistério e a doutrina da trindade cristã: Pai, filho e espírito santo). Compreender a matriz da matrix é poder dialogar com um pensamento sobre a verdade, a realidade, os fluxos, os rizomas, os simulacros, a destruição, as máquinas, a dominação sem sujeito. Em suma: Viajar entre zonas de ficção e zonas de apreensão do real - do real enquanto acontecimento - e pensar que não se pode sonhar acordado na "imensa coleção de mercadorias" (MARX).

Guilherme Bruno.