Eu me organizo pra me desorganizar.

domingo, 19 de agosto de 2012

A arte do ator e a festa de Yemanjá: Ruflos de uma gestualidade

A lua era requinte. As percussões ruflavam. A noite estava tão sedutora quanto a mãe das águas. Deusa, Rainha do mar. Cantavam: “Eu quero ver palha voar”. Assim fui recepcionado pela força mítica de Yemanjá.

A arte do ator, de Jean-Jacques Roubine; e, Gesto, Pantomima e Melodrama – As técnicas de interpretação do ator e a sua influência na construção da arte do ator do século XIX, de Robson Corrêa Camargo são dois textos que irão fazer uma ponte entre a festa mítico-religiosa e a gestualidade que envolve a técnica do ator.

O crepúsculo teatral da festa de Yemanjá

Na noite, tem-se a lua, que além de ser privada de sua luz própria, também atravessa fases diferentes e muda de forma. Símbolo de transformação e crescimento, símbolo do sonho e do inconsciente.

Por outro lado tem-se o sol. Fonte de luz, vida e calor. Seus raios representam as influências celestes recebidas pela terra. O coração do universo que ilumina nosso cotidiano.

Tanto a lua quanto o sol se imbricam na festa de Yemanjá. É um verdadeiro crepúsculo. A festa é datada no dia 15 de agosto, mas tudo começa na noite do dia anterior.

Busquei observar a festa não apenas de dia, mas a noite também. Isso, de certa forma, para tentar entender não a influência que o sol e a lua têm na festa. Não é algo com caráter astrológico. Foi um questionamento que me fiz sobre como seria a dinâmica da festa em quase sua totalidade. Em perceber o comportamento e suas possíveis mudanças.

E é neste instante suspenso, crepuscular, que a Festa alcança um elo teatral. Alcança o apogeu de sua beleza. A gestualidade era praticamente a mesma, tanto a noite quanto pelo dia, mas a energia e a força espiritual eram bastante diferentes.

Pela noite só havia dois ‘terreiros’ no espaço em que eu estava. As oferendas foram deixadas pelo comecinho da madrugada e então a mobilização de energia era bem considerável. Todos bastante felizes por aquele instante. Expressões como: “Quem não tem Deus no coração não tem nada”, já quebraram de imediato a ideia de que as tradições Afro-descendentes dessa natureza são diretamente ligadas a ideia do Diabo. Foi um dos momentos mais felizes de minha vida poder presenciar algo tão fantástico, mesmo tendo uma certa consciência de que meu olhar tinha traços acadêmicos. Mas quando estamos diante de fenômenos dessa natureza, qualquer consciência se altera. E, evidentemente, o olhar se rende a poesia.

Num instante, comentaram sobre Nossa Senhora da Assunção, o que demonstra o lado extremamente sincrético da festa. Muito tabaco, bebidas, frutas, oferendas, ebó. As entidades chegam pouco a pouco, cada uma com uma certa gestualidade e uma característica de se mover no espaço diferentes. Pediam coisas diferentes. Celebravam.

No outro dia, pela tarde, a festa havia tomado outras dimensões. Uma infinidade de pessoas, vários terreiros espalhados pelas areias da praia do futuro. Influências diversas. Pessoas, acredito eu, serem, de outras religiões, pois muitos do que estavam na praia poderiam não saber que era dia de Yemanjá. E os que sabiam, iam festejar!

A cada terreiro sentia uma energia diferente. Alguns, a percussão soava mais forte, mais elétrica, evocando forças mais potentes, mais austeras. Assim, a gestualidade também entrava numa zona de impulso que era estimulada pela força da batida do tambor. A percussão tinha um papel fundamental no acontecimento.

A curiosidade movia cada olhar. Corpos que pareciam até suspensos, com pescoços inclinados para ver o que estava dentro daquele círculo cheio de elementos da fé, da natureza, do homem. Assim como havia terreiros em chamas, havia terreiros que estavam mais banhados pela energia aquosa.

A Rainha das águas

A gestualidade dessa manifestação vem de uma história e de uma tradição muito fortes.

A origem dos orixás resultou do amor de Olorum, que uniu Obatalá (infinito azul, o céu) e Odudua (um ponto finito no infinito azul, o planeta que habitamos). Desta união se formaram Aganju (cháo, mãeterra, onde erguemos nossas casas e plantamos árvores) e Iemanjá (água, toda a massa oceânica). Do amor destes últimos nasceu Orungã (ar, atmosfera terrestre), que tem impulsos edipianos pela mãe. Infeliz diante da realização alucinada do filho, Iemanjá cai e morre. No entanto, seus seios continuaram vivos e crescem desmesuradamente, dos quais começam a fluir os rios. Estes molham a terra, dão-lhe vida e formaram imenso lago (certamente o mar que ela representa), de onde, algum tempo decorrido, foram nascendo os orixás. (Martins, apud Lourdes Macena 1986: 354).

Esta citação de Saul Martins sobre a literatura da religião africana e Yemanjá é o ponto de partida para entender alguns aspectos sobre a origem dos orixás. De acordo com a tradição Iorubá, que versa sobre o princípio vital, responsável pela personalidade (Ori é a região da cabeça responsável pela vida e pelo desenvolvimento do corpo. A cerimônia de dar comida aos orixás, chamada de bori, serve como purificação, renovação das energias espirituais).

A festa de Yemanjá seria um tipo dessa cerimônia. De acordo com esta tradição, Yemanjá mora em Abeokuta, num rio que desemboca no mar, na África. De tanto chorar por seu filho Oxóssi, Yemanjá acaba formando com suas lágrimas um grande rio que leva hoje o seu nome, Yemoja.

Sobre a festa, Lourdes Macena descreve:

A festa de Yemanjá é uma homenagem prestada a mãe dos orixás nos cultos originados através da religiosidade afro-Brasilelira como o candomblé e a umbanda. É uma manifestação de fé e esperança que reúne milhares de pessoas todo o ano na busca de crescimento e proteção espiritual em vários Estados do nosso país.

O que há em comum na festa de Yemanjá com os textos? Ela tem características da pantomima, do gesto ou do melodrama? Como se processa e se constrói uma gestualidade ‘não elaborada’ do ponto de vista da consciência corporal? E porque a forma como eles cantam, traduz de certa forma uma ‘gestualidade vocal’ e uma estética tal que muitas vezes um ator com a melhor técnica possível não alcança? Qual o poder da expressão que um gesto pode causar? E isso frente a uma raiz africana tem algum impacto? Como todas essas questões podem influenciar no trabalho do ator?

São muitas as questões. Mas a mola-motriz é: O que seria gesto?

A compreensão do gesto

Gestus é o correspondente na língua latina daquilo que chamamos comumente de gesto. Isso seria uma determinada postura corporal que dá expressão a uma idéia ou sentimento, ao mesmo tempo em que os tornam visíveis para os outros. De alguma forma esta concepção habitual faz a gestualidade estar fundamentada pela natureza humana como expressão do mais íntimo e essencial de cada um. Mas o gesto é também uma expressão física de certas relações sociais. Parte do exposto aqui é resultado da pesquisa: O gesto entre dois universos: A noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuze, do mestre em psicologia e professor da faculdade de artes do Paraná, Francisco de Assis Gaspar Neto.

O trabalho de pesquisa deste professor chama a atenção pelo fato da noção do gesto ser uma expressão física de relações sociais. Foi observado isso na Festa e havia uma relação social ali. Aliás, várias.

Analogamente, é como a relação ator-público no teatro. Penso o gesto como algo que quer expressar algo e que, dependendo da cultura onde está inserido, ele tem uma codificação universal. Por exemplo, o gesto de pedir para fazer silêncio é automaticamente lembrado à nossa memória de um dedo indicador na boca de uma pessoa. É um código que se repete dentro de uma cultura e cria elementos de características comuns na sua ação e que finda sendo reconhecida por aquela comunidade.

Eis alguns pontos, dos quais tanto Roubine quanto Robson Corrêa Camargo, discorrem sobre.

Gesto, pantomima e melodrama

No 1º dia de aula discutimos sobre as diferenças entre mímica e pantomima, por exemplo. Na mímica pode ter fala. Já na pantomima, que é um gênero da mímica, não tem fala. É uma forma de expressão não falada, cênica e gestual. Ela tem importância no melodrama porque também contribui para a improvisação e foi o gênero formador do melodrama que tem sua origem associada à ópera e com o passar do tempo sai de um caráter mais popular - com pouca preocupação com os textos - e detém-se mais aos efeitos de cena, triunfando numa estrutura narrativa imutável: amor, infelicidade, vingança. É o que se vê hoje na teledramaturgia brasileira em geral.

O pesquisador desse texto aborda o gesto como um princípio dinâmico da representação e associa-o à pantomima e ao melodrama numa viagem histórica da formação do ator ocidental. Desde as primeiras civilizações até o século XIX. Sendo, portanto, todo este período influenciado por esta forma de fazer teatral.

Trata também das diferenças da pantomima na Grécia e em Roma e de como, ao longo dos anos, estas formas foram ganhando uma consistência própria. Um breve paradoxo importante citado no texto: “A pantomima recusa a distinção entre corpo e fala que se desenvolveu no teatro da palavra escrita representada”.

Paradoxo que pretendeu distinguir o teatro dramático da dança como sendo um somente responsável pela palavra e o outro como império do corpo. O texto também traz a arte do gesto total e da pantomima no treinamento do ator dando uma verdadeira ênfase ao estudo do gesto e da pantomima. Principio dinâmico da representação é um termo que nos traz a imagem de algo que tem movimento, tem corpo e que pode ser aprofundado.

O ator corporifica essa ideia para construir uma gestualidade mais potente, experimentando as diversas gestualidades no corpo e em busca do sentido do movimento.

Sobre o treinamento do ator, Bragaglia, citado pelo pesquisador Robson descreve que esse treinamento é composto por três fases: O grau de consciência profunda do fazer teatral e de sua conexão com a platéia; o desenvolvimento da gestualidade da personagem; e a arte de fazer-se entender ou contar a história sofrida pela personagem.

A arte do ator: Ator, Orixá, mobilizador do sagrado

Ao percorrer as linhas dos textos lidos é clara a tradição da pantomima. Em a arte do Ator, Roubine toca em pontos-chave sobre, como por exemplo, quando fala da atelana, do período romano, que era um gênero farsesco que prenunciava a commedia dell’arte.

A relação do gesto com o cômico e de como o gesto se alimentou disso por causa das farsas, da improvisação na rua, entre outros elementos.

Mas ele alerta: “Seria evidentemente ingênuo pensar que a questão do gesto se coloca apenas para o ator cômico”. O teatro criou formas ao longo do tempo de uma gestualidade própria, um teatro-movimento.

Do século XVII ao século XIX, gestualidade e realismo se entrelaçam e, ao mesmo tempo se afastam quando a pantomima deixa de ser um gênero autônomo. Isso devido a crítica ao academicismo desse período, por volta do século XVIII. A pantomima vai desaguando aso poucos no mar do teatro e se envolvendo com a interpretação da tragédia, oferecendo por um lado, um vasto campo de experiência ao ator e, por outro oferece cenas de imagens dando espaço à expressão paraverbial.

O que essas ideias tem em comum com a Festa de Yemanjá e todo seu ritual de cerimônia? De um modo geral, presenciar manifestações desse tipo amplia os leques de possibilidades da percepção e isso para o ator é fundamental. Permite também construir, cenicamente, algum trabalho que necessite de contato com a cultura popular. Diria também que é importante esse sentimento de alteridade e empatia para o exercício constante de se colocar no lugar do outro. Fazer reflexões mais robustas, mais encorpadas, unindo temas que se interligam por algum trilho. Tantos possíveis olhares e, nesse sentido, construir uma educação do olhar, sensibilizando-o e aproximando pessoas.

Pelas percepções geradas, o que mais fica claro é o poder da expressão que aquelas pessoas têm. É a impregnação cultural, o mito, a fé, o sagrado e o profano que fazem eles se reunirem para comemorar esta Orixá. Por isso, a forma como eles se expressam é tão verdadeira. Vem de dentro, da alimentação espiritual que eles têm no seu religare, na sua conexão com o cosmos.

É esta expressividade que o ator deve buscar em seu trabalho também. A raiz afro-descendente também causa um certo impacto sobre isso, pois a cultura exuberante oriunda da África é infinita, rica, diversa e quando se aglomerou ao povo que aqui já habitava fez nascer toda uma ramificação de religiões no Brasil que muitas vezes a negamos, mas inconscientemente a temos no dia-a-dia, nos mais simples hábitos.

Não basta executar corretamente, como aponta Roubine. Tem que ter um movimento emotivo. Tem que ter vida. A energia presente em contato com a profundeza das águas encanta e se apodera dos que estão em livre trânsito corporal. Por isso, tem momentos que parece exagero, pois é algo muito forte. Estamos lidando com algo invisível e espiritual.

Outro ponto é a teatralidade presente no movimento gestual da manifestação, tanto de quem assiste quanto de quem faz. Quem vê é movido pela percepção e recepção que os seus sentidos aguçam. Quem faz é movido pelo incorpóreo.

Isso tem um caráter teatral na medida em que há uma relação com o ritual, a narrativa e o jogo propostos entre eles nessa ‘encenação’. Além disso, a questão do exagero chega como algo natural e não como algo estudado e composto para uma possível "representação". Não é uma representação, é criação de realidade. São corpos em chama. Nós enquanto atores, temos que nos orientar quanto a isso e encontrar nossos caminhos.

Para a festa de Yemanjá, fica a alegria, a sensação dos fluxos em encontros. Laroiê, Exu, Ogum, Xangô, Oxossi, Virgem Maria, Nossa senhora da Assunção, Jesus de Nazaré, Padre Cícero ou Deus, se quiser.

“Somos zeladores de orixás, somos diretores espirituais”, disse uma cantora no palco cantando Afoxé.

A nossa sociedade ainda não aprendeu a lidar com a profundidade de determinados fatos nem das tradições. Não somos educados para isso. A nossa educação é outra. É cartesiana.

Mas precisamos, enquanto educadores também, exercer um papel sobre esses olhares e quebrar tabus. Viva Yemanjá! Viva seus orixás com seus peculiares gestos! Viva o povo do candomblé e da Umbanda! Somos todos católicosapostólicosromanosprotestantesespiritas e macumbeiros. Assim somos enquanto povo. Somos esta imensidão chamada Brasil.

Fica um legado gestual a ser estudado e compreendido pelo ator. Por todos nós. Iorubá. Yemanjá, mãe, rainha das águas, lave nossos percursos todos os dias e purifique-nos com teu banho.

*Texto apresentado à disciplina de Interpretação I - ministrada pelo prof. Tomaz de Aquino - do Curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. Para o blog, o texto sofreu algumas alterações do texto original. As impressões contidas nesse trabalho foram geradas a partir de uma aula de campo no dia da festa de Yemanjá em agosto de 2011, na cidade de Fortaleza-Ce. Aqui, a festa é comemorada no mesmo dia em que se comemora Nossa Senhora da Assunção, padroeira da cidade. A aula foi em parceria, envolvendo a disciplina supracitada e as disciplinas de 'Teatro e Cultura Popular' e 'Danças Dramáticas e Sociais - ambas ministradas pela prof.ª Lourdes Macena.

**Bibliografia consultada: Gesto, pantomima e melodrama – As técnicas de interpretação do ator na pantomima e sua influência na construção da arte do século XIX (Robson Camargo); Dicionário de símbolos (Jean Chevalier); A arte de não interpretar como poesia córporea do ator (Renato Ferracini); O potencial turístico da festa de Yemanjá em Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (Maria de Lourdes Macena); O gesto entre dois universos: A noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuze (Francisco de Assis Gaspar); disponível em: http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/Arquivos2009/Pesquisa/Rev_cientifica4/artigo_Francisco_de_Assis.pdf; Melodrama, folhetim e telenovela: anotações para um estudo comparativo (Luiz Flavio Porto) disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_15/_flavio_porto.pdf; Introdução à análise do teatro (Jean-Pierre Ryngaert); A arte do ator (Jean Jacques Roubine).

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O ator-performer e a dramaturgia do desejo

As recordações borbulham. Elas brotam, naturalmente. Recordo-me da experiência de imersão coletiva "O ator-performer - Dramaturgia do Desejo", um processo intensivo de pesquisa e criação artística sob a Direção de Silvana Abreu.

Acredito que isso que escrevo agora é uma mistura de ficção com realidade, de poesia com prosa. Toda essa provável mistura são reflexos de uma experiência que só pôde ser vivida graças ao encontro, à arte do encontro.

As possibilidades de se viver diferente, de encontrar - num horizonte qualquer - a imaginação simbólica de sua existência. Acredito ser essa, uma das grandes missões do artista. Para o ator-performer, adentrar no campo minado do perigo e da sorte. Um guerreiro que segue diante dos desafios colocando seu corpo à xeque-mate. Um corpo que é movimento, acontecimento, fluxo. Um corpo-em-vida¹, em devir. Por isso, investi-lo, buscá-lo. Sê-lo.

São Francisco Xavier, interior de São Paulo. Cinco dias de construção. Cinco dias de arte. Milhões de dias de vida. Um teatro de carne, pele e osso². Um teatro que irradia e contamina. Num mergulho dos nossos desejos, construir uma dramaturgia própria, que não seja só princípio e construção da obra, mas que traga à tona a força da sensação da arte, provocando fricções, tendo o desejo como potência de afirmação da vida e fortalecendo o teatro na criação de realidade, no aqui-agora. Afetar e ser afetado. Na dramaturgia do desejo é possível descobrir um vocabulário próprio de expressão física e emocional, pois o corpo responde ao que ele mesmo pede: o próprio desejo. Não há vida sem ele.

E, para além disso, celebrar o rito - individual e coletivamente - num ambiente permissivo, reunindo pessoas com objetivos comuns, mas com desejos únicos.

Já se passaram alguns dias após a experiência. Estes foram necessários para voltar um pouco ao cotidiano, reconhecendo nele também, suas poesias e metáforas. Embebendo-se um pouco da luz de Apolo, equilibrando-a com a sombra de Dionísio. Quis muito escrever algo sobre o workshop, mas ainda estava tudo muito dilatado. Então, esperei passar uns dias e falar um pouco, em linhas gerais, sobre minhas impressões e traços de tudo o que vivi.

Era uma alegria acordar mais cedo e ir trabalhar naquela sala. O frio petrificava um pouco essa alegria, mas o desejo não. Sempre por volta das 7h, mesclava o que estava aprendendo com os fluxos de criação que surgiam. Entretanto, havia um grande problema: Minhas companheiras de quarto sempre acordavam com o despertar do meu celular, menos eu! Uma delas, em específico, ficava 'p' da vida. Era engraçado (Risos). Todos os dias foram assim, vivenciando o máximo possível, pois sabia que ia passar rápido e forte, como uma lapada de cana.

Durante o período, uma alimentação regrada, sem carnes. Salve, salve aquelas mãos mágicas da cozinha. Sonho com aquela coalhada matinal todos os dias! Além disso, uma paisagem que descia sobre os olhos um eminente entusiasmo. Um ambiente extremamente propício à criação. A energia de cada um, do lugar, o barulho da cachoeira, a natureza. Enfim. O banquete era farto. Banquete de arte, de conhecimento, de alimento. Foi mágico!

A cada dia vivíamos coisas diferentes. Consumíamos intensidades diferentes. E, já no primeiro dia de apresentação, coloquei meu nariz de palhaço e disse: É agora! Ao fim da apresentação, a Silvana me pediu para eu colocar o nariz novamente e também pediu que eu dançasse. Senti meu corpo vibrar, um Ianomâmi. A poesia do riso eclodiu, provocou, alterou, modificou. Pude perceber o palhaço como um ser universal, não importando as culturas em que ele se encontra, nem tão pouco se ele é assim ou assado. Importando, de fato, a conexão que o "paiaço" (assim que costumo chamar) estabelece através da conquista do riso. Falando (pelo, de, com, através do,) coração com a condição humana da queda. Este ser que elege - inevitavelmente - como postura e crítica a inerência do riso, fazendo arte com a tragédia, brincando de rir com o trágico.

Ao longo do curso, foram muitas vivências que nasciam de trabalhos corporais, éramos uma fábrica de edificação corpórea. Éramos Como o tao. A solidão tinha uma lugar distante. Era uma "solidão pública", como dizia Stanislavski.

Na minha segunda apresentação, preferi descobrir outros desejos que dialogassem com aquele espaço, com as pessoas e objetos ali presentes. Assim como o presente muda constantemente, o espaço também. Queria esse efeito. "Cuando se crea un espacio su sugnificado cambia constantemente, porque él presente también cambia constantemente." (BROOK. In: Él espacio abierto). Quis uma 'mini-itinerância' com o público dentro desse contexto e a exploração do texto a partir do que venho pesquisando/trabalhando enquanto ator. Era necessário, talvez, investigar as sonoridades do espaço, já que venho pesquisando uma dramaturgia de sons (vocais ou não), uma dramaturgia sonora³. Senti que era preciso uma outra música e descobri um texto suavemente erótico que se encaixava com o que já vinha buscando nesse curto prazo de tempo. O texto era de Catharina Ruffo e ele já trazia a ação, a intenção em si. Cabia a mim experimentar esses tons. E foi muito interessante. Num momento da cena, uma arara evocou seu cântico e brincou comigo, fazendo festa com todos os presentes. Sensação impagável!

"Se utilizo o termo guerreiro, penso novamente em Castaneda mas todas as escrituras também falam de guerreiros. Encontra-se tanto na tradição hindu, como na africana. É alguém que é consciente de sua própria mortalidade. Se tiver que afrontar os cadáveres, os afronta, mas se não tiver que matar, não mata. Entre os índios do novo mundo se diz dos guerreiros que no campo de batalha tem um coração terno, como uma jovem donzela. Luta para conquistar o conhecimento, porque a pulsão da vida se torna mais forte, mais articulada nos momentos de grande intensidade, de grande perigo. No momento do desafio aparece a ritmização das pulsações humanas. O ritual é um momento de grande intensidade. Intensidade provocada. A vida então se torna rítmica. O performer, sabe ligar o impulso corpóreo à sonoridade (o fluxo da vida deve articular-se em formas). Os testemunhos entram então em estados intensos porque, dizem, estão sentindo uma presença. E isto, graças ao performer que é uma ponte entre o testemunho e algo. Neste sentido, é pontifex, fazedor de pontes." (GROTOWSKI. In: O performer).

Eis a imagem do guerreiro. Um homem da ação. O ator-performer é homem da ação, um sacerdote e está imune de qualquer gênero estético. O Performer é um estado, uma presentificação do ausente. Sua técnica deve estar aliada a seu favor, fluir naturalmente consigo mesmo. A técnica como libertação. Assim, pude ver a mímica por outros ângulos e o que ela provoca. Experienciar a transição dramática no âmbito dessa técnica. No âmbito da minha poética, pois sendo o ator um poeta do movimento, é somente acessando-o que ele - necessariamente - arquiteta sua arte.

Pude ver o encanto de todas as idades. Os contextos dramáticos, a experimentação da imaginação criativa, as escolhas. Escolhas e imaginação, traçando caminhos, observando os corpos, as potencialidades, o movimento preenchido do mais alto sentido. E, evidentemente, o pensamento operando na realidade, no ato, no crível.

No adestramento do ator Nô, a dedicação absoluta é algo evidente por si. Zeami, nos traz a imagem da flor, que brota da nossa força espiritual. Corpo, mente e espírito. É a construção de uma longa estrada de estudos. Uma imensa jornada.

Nesta jornada fomos construindo produções de sentido ao emanar desejos, vontades. A presença do desejo como latência de criação e pulsação, expandindo a percepção do corpo que, por sua vez, explode em movimento e detona dinâmicas. Assim, íamos ligando as teias de nossa própria história, construindo uma dramaturgia orgânica, vibrante, uma dramaturgia do desejo.

Quais as ameaças que o futuro encerra, a partir de agora? A continuidade dos passos que irão fortalecer, cada vez mais, o meu ofício, o ofício de ator, performer e palhaço. Coragem sempre! Evoé para todos!

¹Em www.silvanaabreu.com;

²Zeami, em seus tratados sobre o teatro Nô: "Na representação do Nô há três elementos básicos: Pele, Carne e Osso. Os três não são quase nunca encontrados juntos no mesmo ator. Quando se trata de explicar os elementos da Pele, da Carne e do Osso em termos de Nô, o que pode ser descrito como Osso, representa aquela força artística excepcional que um ator dotado mostra naturalmente na representação e que chega a ele por meio de sua habilidade inata. A carne pode, sem dúvida, ser definida como o elemento visível numa representação que surge do poder das habilidades do ator obtidas pelo seu domínio das duas artes básicas de canto e dança. A pele, por outro lado, pode ser explicada como uma maneira de sossego e beleza na representação, obtida quando os dois outros elementos são consumados inteiramente. Colocando de outra maneira: quando se considera a arte que vem da Visão, a arte que vem do Som e a arte que vem do Coração, pode-se dizer que a visão deveria ser igualada à Pele, o Som à Carne e o Coração ao Osso."

³ In Queimar a casa.

Agradecimentos: Silvana Abreu, Marina Athie, Instituto Gaia Revida, todos os participantes do workshop O ator-performer - Dramaturgia do Desejo. Em especial a Patrícia Zapletal e Catharina Ruffo, minhas companheiras do quarto 11. À Tacira Coelho, pelos risos e caretas. À Camila Alves, pelo carinho. À Mario Filho , por me apresentar o caminho do riso. À Danilo Pinho, que está na Bahia de todos os santos. À todos que acreditam na arte, a minha tia Joselma por ter me proporcionado essa vivência, aos amigos, aos grandes mestres do teatro e do ator-criador. Aos que, de algum modo, ocuparam a posição do líder que compartilha conhecimentos - portanto, meus mestres -, À vida.

www.silvanaabreu.com

*Foram consultadas as seguintes fontes/livros: O performer (Texto de Jerzy Grotowski, Tradução de Sidney Souto); A arte secreta do ator (Eugênio Barba); Teatro: Leste e Oeste (Leonard C.Pronko); Uma introdução ao método Margolis: Uma abordagem dinâmica para o treinamento do ator (Texto de Kari Margolis , Tradução de Danilo Pinho); Queimar a casa - origens de um diretor (Eugênio Barba), O ator invisível (Yoshi Oida), El espacio Abierto (Jean Guy Lecat). Obs: Não consigo justificar as linhas do texto nesse blog!!!!

Guilherme Bruno. twitter.com/GuilBruno. https://www.facebook.com/guilherme.b.delima