Eu me organizo pra me desorganizar.

domingo, 19 de agosto de 2012

A arte do ator e a festa de Yemanjá: Ruflos de uma gestualidade

A lua era requinte. As percussões ruflavam. A noite estava tão sedutora quanto a mãe das águas. Deusa, Rainha do mar. Cantavam: “Eu quero ver palha voar”. Assim fui recepcionado pela força mítica de Yemanjá.

A arte do ator, de Jean-Jacques Roubine; e, Gesto, Pantomima e Melodrama – As técnicas de interpretação do ator e a sua influência na construção da arte do ator do século XIX, de Robson Corrêa Camargo são dois textos que irão fazer uma ponte entre a festa mítico-religiosa e a gestualidade que envolve a técnica do ator.

O crepúsculo teatral da festa de Yemanjá

Na noite, tem-se a lua, que além de ser privada de sua luz própria, também atravessa fases diferentes e muda de forma. Símbolo de transformação e crescimento, símbolo do sonho e do inconsciente.

Por outro lado tem-se o sol. Fonte de luz, vida e calor. Seus raios representam as influências celestes recebidas pela terra. O coração do universo que ilumina nosso cotidiano.

Tanto a lua quanto o sol se imbricam na festa de Yemanjá. É um verdadeiro crepúsculo. A festa é datada no dia 15 de agosto, mas tudo começa na noite do dia anterior.

Busquei observar a festa não apenas de dia, mas a noite também. Isso, de certa forma, para tentar entender não a influência que o sol e a lua têm na festa. Não é algo com caráter astrológico. Foi um questionamento que me fiz sobre como seria a dinâmica da festa em quase sua totalidade. Em perceber o comportamento e suas possíveis mudanças.

E é neste instante suspenso, crepuscular, que a Festa alcança um elo teatral. Alcança o apogeu de sua beleza. A gestualidade era praticamente a mesma, tanto a noite quanto pelo dia, mas a energia e a força espiritual eram bastante diferentes.

Pela noite só havia dois ‘terreiros’ no espaço em que eu estava. As oferendas foram deixadas pelo comecinho da madrugada e então a mobilização de energia era bem considerável. Todos bastante felizes por aquele instante. Expressões como: “Quem não tem Deus no coração não tem nada”, já quebraram de imediato a ideia de que as tradições Afro-descendentes dessa natureza são diretamente ligadas a ideia do Diabo. Foi um dos momentos mais felizes de minha vida poder presenciar algo tão fantástico, mesmo tendo uma certa consciência de que meu olhar tinha traços acadêmicos. Mas quando estamos diante de fenômenos dessa natureza, qualquer consciência se altera. E, evidentemente, o olhar se rende a poesia.

Num instante, comentaram sobre Nossa Senhora da Assunção, o que demonstra o lado extremamente sincrético da festa. Muito tabaco, bebidas, frutas, oferendas, ebó. As entidades chegam pouco a pouco, cada uma com uma certa gestualidade e uma característica de se mover no espaço diferentes. Pediam coisas diferentes. Celebravam.

No outro dia, pela tarde, a festa havia tomado outras dimensões. Uma infinidade de pessoas, vários terreiros espalhados pelas areias da praia do futuro. Influências diversas. Pessoas, acredito eu, serem, de outras religiões, pois muitos do que estavam na praia poderiam não saber que era dia de Yemanjá. E os que sabiam, iam festejar!

A cada terreiro sentia uma energia diferente. Alguns, a percussão soava mais forte, mais elétrica, evocando forças mais potentes, mais austeras. Assim, a gestualidade também entrava numa zona de impulso que era estimulada pela força da batida do tambor. A percussão tinha um papel fundamental no acontecimento.

A curiosidade movia cada olhar. Corpos que pareciam até suspensos, com pescoços inclinados para ver o que estava dentro daquele círculo cheio de elementos da fé, da natureza, do homem. Assim como havia terreiros em chamas, havia terreiros que estavam mais banhados pela energia aquosa.

A Rainha das águas

A gestualidade dessa manifestação vem de uma história e de uma tradição muito fortes.

A origem dos orixás resultou do amor de Olorum, que uniu Obatalá (infinito azul, o céu) e Odudua (um ponto finito no infinito azul, o planeta que habitamos). Desta união se formaram Aganju (cháo, mãeterra, onde erguemos nossas casas e plantamos árvores) e Iemanjá (água, toda a massa oceânica). Do amor destes últimos nasceu Orungã (ar, atmosfera terrestre), que tem impulsos edipianos pela mãe. Infeliz diante da realização alucinada do filho, Iemanjá cai e morre. No entanto, seus seios continuaram vivos e crescem desmesuradamente, dos quais começam a fluir os rios. Estes molham a terra, dão-lhe vida e formaram imenso lago (certamente o mar que ela representa), de onde, algum tempo decorrido, foram nascendo os orixás. (Martins, apud Lourdes Macena 1986: 354).

Esta citação de Saul Martins sobre a literatura da religião africana e Yemanjá é o ponto de partida para entender alguns aspectos sobre a origem dos orixás. De acordo com a tradição Iorubá, que versa sobre o princípio vital, responsável pela personalidade (Ori é a região da cabeça responsável pela vida e pelo desenvolvimento do corpo. A cerimônia de dar comida aos orixás, chamada de bori, serve como purificação, renovação das energias espirituais).

A festa de Yemanjá seria um tipo dessa cerimônia. De acordo com esta tradição, Yemanjá mora em Abeokuta, num rio que desemboca no mar, na África. De tanto chorar por seu filho Oxóssi, Yemanjá acaba formando com suas lágrimas um grande rio que leva hoje o seu nome, Yemoja.

Sobre a festa, Lourdes Macena descreve:

A festa de Yemanjá é uma homenagem prestada a mãe dos orixás nos cultos originados através da religiosidade afro-Brasilelira como o candomblé e a umbanda. É uma manifestação de fé e esperança que reúne milhares de pessoas todo o ano na busca de crescimento e proteção espiritual em vários Estados do nosso país.

O que há em comum na festa de Yemanjá com os textos? Ela tem características da pantomima, do gesto ou do melodrama? Como se processa e se constrói uma gestualidade ‘não elaborada’ do ponto de vista da consciência corporal? E porque a forma como eles cantam, traduz de certa forma uma ‘gestualidade vocal’ e uma estética tal que muitas vezes um ator com a melhor técnica possível não alcança? Qual o poder da expressão que um gesto pode causar? E isso frente a uma raiz africana tem algum impacto? Como todas essas questões podem influenciar no trabalho do ator?

São muitas as questões. Mas a mola-motriz é: O que seria gesto?

A compreensão do gesto

Gestus é o correspondente na língua latina daquilo que chamamos comumente de gesto. Isso seria uma determinada postura corporal que dá expressão a uma idéia ou sentimento, ao mesmo tempo em que os tornam visíveis para os outros. De alguma forma esta concepção habitual faz a gestualidade estar fundamentada pela natureza humana como expressão do mais íntimo e essencial de cada um. Mas o gesto é também uma expressão física de certas relações sociais. Parte do exposto aqui é resultado da pesquisa: O gesto entre dois universos: A noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuze, do mestre em psicologia e professor da faculdade de artes do Paraná, Francisco de Assis Gaspar Neto.

O trabalho de pesquisa deste professor chama a atenção pelo fato da noção do gesto ser uma expressão física de relações sociais. Foi observado isso na Festa e havia uma relação social ali. Aliás, várias.

Analogamente, é como a relação ator-público no teatro. Penso o gesto como algo que quer expressar algo e que, dependendo da cultura onde está inserido, ele tem uma codificação universal. Por exemplo, o gesto de pedir para fazer silêncio é automaticamente lembrado à nossa memória de um dedo indicador na boca de uma pessoa. É um código que se repete dentro de uma cultura e cria elementos de características comuns na sua ação e que finda sendo reconhecida por aquela comunidade.

Eis alguns pontos, dos quais tanto Roubine quanto Robson Corrêa Camargo, discorrem sobre.

Gesto, pantomima e melodrama

No 1º dia de aula discutimos sobre as diferenças entre mímica e pantomima, por exemplo. Na mímica pode ter fala. Já na pantomima, que é um gênero da mímica, não tem fala. É uma forma de expressão não falada, cênica e gestual. Ela tem importância no melodrama porque também contribui para a improvisação e foi o gênero formador do melodrama que tem sua origem associada à ópera e com o passar do tempo sai de um caráter mais popular - com pouca preocupação com os textos - e detém-se mais aos efeitos de cena, triunfando numa estrutura narrativa imutável: amor, infelicidade, vingança. É o que se vê hoje na teledramaturgia brasileira em geral.

O pesquisador desse texto aborda o gesto como um princípio dinâmico da representação e associa-o à pantomima e ao melodrama numa viagem histórica da formação do ator ocidental. Desde as primeiras civilizações até o século XIX. Sendo, portanto, todo este período influenciado por esta forma de fazer teatral.

Trata também das diferenças da pantomima na Grécia e em Roma e de como, ao longo dos anos, estas formas foram ganhando uma consistência própria. Um breve paradoxo importante citado no texto: “A pantomima recusa a distinção entre corpo e fala que se desenvolveu no teatro da palavra escrita representada”.

Paradoxo que pretendeu distinguir o teatro dramático da dança como sendo um somente responsável pela palavra e o outro como império do corpo. O texto também traz a arte do gesto total e da pantomima no treinamento do ator dando uma verdadeira ênfase ao estudo do gesto e da pantomima. Principio dinâmico da representação é um termo que nos traz a imagem de algo que tem movimento, tem corpo e que pode ser aprofundado.

O ator corporifica essa ideia para construir uma gestualidade mais potente, experimentando as diversas gestualidades no corpo e em busca do sentido do movimento.

Sobre o treinamento do ator, Bragaglia, citado pelo pesquisador Robson descreve que esse treinamento é composto por três fases: O grau de consciência profunda do fazer teatral e de sua conexão com a platéia; o desenvolvimento da gestualidade da personagem; e a arte de fazer-se entender ou contar a história sofrida pela personagem.

A arte do ator: Ator, Orixá, mobilizador do sagrado

Ao percorrer as linhas dos textos lidos é clara a tradição da pantomima. Em a arte do Ator, Roubine toca em pontos-chave sobre, como por exemplo, quando fala da atelana, do período romano, que era um gênero farsesco que prenunciava a commedia dell’arte.

A relação do gesto com o cômico e de como o gesto se alimentou disso por causa das farsas, da improvisação na rua, entre outros elementos.

Mas ele alerta: “Seria evidentemente ingênuo pensar que a questão do gesto se coloca apenas para o ator cômico”. O teatro criou formas ao longo do tempo de uma gestualidade própria, um teatro-movimento.

Do século XVII ao século XIX, gestualidade e realismo se entrelaçam e, ao mesmo tempo se afastam quando a pantomima deixa de ser um gênero autônomo. Isso devido a crítica ao academicismo desse período, por volta do século XVIII. A pantomima vai desaguando aso poucos no mar do teatro e se envolvendo com a interpretação da tragédia, oferecendo por um lado, um vasto campo de experiência ao ator e, por outro oferece cenas de imagens dando espaço à expressão paraverbial.

O que essas ideias tem em comum com a Festa de Yemanjá e todo seu ritual de cerimônia? De um modo geral, presenciar manifestações desse tipo amplia os leques de possibilidades da percepção e isso para o ator é fundamental. Permite também construir, cenicamente, algum trabalho que necessite de contato com a cultura popular. Diria também que é importante esse sentimento de alteridade e empatia para o exercício constante de se colocar no lugar do outro. Fazer reflexões mais robustas, mais encorpadas, unindo temas que se interligam por algum trilho. Tantos possíveis olhares e, nesse sentido, construir uma educação do olhar, sensibilizando-o e aproximando pessoas.

Pelas percepções geradas, o que mais fica claro é o poder da expressão que aquelas pessoas têm. É a impregnação cultural, o mito, a fé, o sagrado e o profano que fazem eles se reunirem para comemorar esta Orixá. Por isso, a forma como eles se expressam é tão verdadeira. Vem de dentro, da alimentação espiritual que eles têm no seu religare, na sua conexão com o cosmos.

É esta expressividade que o ator deve buscar em seu trabalho também. A raiz afro-descendente também causa um certo impacto sobre isso, pois a cultura exuberante oriunda da África é infinita, rica, diversa e quando se aglomerou ao povo que aqui já habitava fez nascer toda uma ramificação de religiões no Brasil que muitas vezes a negamos, mas inconscientemente a temos no dia-a-dia, nos mais simples hábitos.

Não basta executar corretamente, como aponta Roubine. Tem que ter um movimento emotivo. Tem que ter vida. A energia presente em contato com a profundeza das águas encanta e se apodera dos que estão em livre trânsito corporal. Por isso, tem momentos que parece exagero, pois é algo muito forte. Estamos lidando com algo invisível e espiritual.

Outro ponto é a teatralidade presente no movimento gestual da manifestação, tanto de quem assiste quanto de quem faz. Quem vê é movido pela percepção e recepção que os seus sentidos aguçam. Quem faz é movido pelo incorpóreo.

Isso tem um caráter teatral na medida em que há uma relação com o ritual, a narrativa e o jogo propostos entre eles nessa ‘encenação’. Além disso, a questão do exagero chega como algo natural e não como algo estudado e composto para uma possível "representação". Não é uma representação, é criação de realidade. São corpos em chama. Nós enquanto atores, temos que nos orientar quanto a isso e encontrar nossos caminhos.

Para a festa de Yemanjá, fica a alegria, a sensação dos fluxos em encontros. Laroiê, Exu, Ogum, Xangô, Oxossi, Virgem Maria, Nossa senhora da Assunção, Jesus de Nazaré, Padre Cícero ou Deus, se quiser.

“Somos zeladores de orixás, somos diretores espirituais”, disse uma cantora no palco cantando Afoxé.

A nossa sociedade ainda não aprendeu a lidar com a profundidade de determinados fatos nem das tradições. Não somos educados para isso. A nossa educação é outra. É cartesiana.

Mas precisamos, enquanto educadores também, exercer um papel sobre esses olhares e quebrar tabus. Viva Yemanjá! Viva seus orixás com seus peculiares gestos! Viva o povo do candomblé e da Umbanda! Somos todos católicosapostólicosromanosprotestantesespiritas e macumbeiros. Assim somos enquanto povo. Somos esta imensidão chamada Brasil.

Fica um legado gestual a ser estudado e compreendido pelo ator. Por todos nós. Iorubá. Yemanjá, mãe, rainha das águas, lave nossos percursos todos os dias e purifique-nos com teu banho.

*Texto apresentado à disciplina de Interpretação I - ministrada pelo prof. Tomaz de Aquino - do Curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará. Para o blog, o texto sofreu algumas alterações do texto original. As impressões contidas nesse trabalho foram geradas a partir de uma aula de campo no dia da festa de Yemanjá em agosto de 2011, na cidade de Fortaleza-Ce. Aqui, a festa é comemorada no mesmo dia em que se comemora Nossa Senhora da Assunção, padroeira da cidade. A aula foi em parceria, envolvendo a disciplina supracitada e as disciplinas de 'Teatro e Cultura Popular' e 'Danças Dramáticas e Sociais - ambas ministradas pela prof.ª Lourdes Macena.

**Bibliografia consultada: Gesto, pantomima e melodrama – As técnicas de interpretação do ator na pantomima e sua influência na construção da arte do século XIX (Robson Camargo); Dicionário de símbolos (Jean Chevalier); A arte de não interpretar como poesia córporea do ator (Renato Ferracini); O potencial turístico da festa de Yemanjá em Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (Maria de Lourdes Macena); O gesto entre dois universos: A noção de gestus no teatro de Bertolt Brecht e no cinema dos corpos de Giles Deleuze (Francisco de Assis Gaspar); disponível em: http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/Arquivos2009/Pesquisa/Rev_cientifica4/artigo_Francisco_de_Assis.pdf; Melodrama, folhetim e telenovela: anotações para um estudo comparativo (Luiz Flavio Porto) disponível em: http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_15/_flavio_porto.pdf; Introdução à análise do teatro (Jean-Pierre Ryngaert); A arte do ator (Jean Jacques Roubine).

Nenhum comentário:

Postar um comentário