Eu me organizo pra me desorganizar.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Cru-el: Tessituras sobre o corpo sem órgãos de Artaud

Sangue, ossos, pele, olhos, ânus, vagina, pênis, rins, esôfago, intestino, pulmões, estômago. Para que nos servem os órgãos? Eles estão a serviço de quê? Do poder? da potência? Certamente um corpo sem órgãos transcende a qualquer demanda. Seja ela social, cultural, histórica, capital. Ele não obedece a nenhum rigor anatômico, funcional, clínico. Artaud declara guerra a seus órgãos e a essa subserviência do funcionamento do corpo e a hierarquização dos órgãos. De um corpo bem organizado, de um corpo como máquina cartesiana arquitetada e projetada para a padronização do comportamento, reduzido a regimes de modos de vida. Regimes pseudo-sensíveis. Regimes físicos da felicidade corporal, por exemplo - a dieta, o prazer, a inversão da estética, a produção de corpos voltados para fins, objetivos. O corpo, então, deixa de acontecer, deixa de produzir-se a si mesmo, perde potência, fica fragmentado, escoa pelo ralo. Não é capaz de experimentar e experienciar intensidades, construir percepção corpórea. A vida nas nossas sociedades atuais não suporta a intensidade, o estado intensivo do corpo e do pensamento. Há o tempo todo modos de poder que camuflam o corpo, os afetos, o pensamento. Uma sociedade 'Big Brother' de espionagem do sujeito. Nesse sentido, para Artaud, o corpo tem um imenso 'fundo falso', relicário de preciosidades. Atravessado por todo um conjunto sensível que se amplia ao se produzir, ao se desierarquizar-se de seus órgãos, (des)capturando-os. Um corpo presente numa crueldade, numa metafísica. A crueldade entendida mais profundamente. Uma radicalização da vida pela crueldade. O exercício da crueldade, aqui, se passa num horizonte muito mais sutil. É uma 'violência da calma' (Viviane Forrester). Ele nos diz: "No plano da representação, não se trata dessa crueldade que podemos exercer uns sobre os outros, despedaçando-nos mutuamente, serrando anatomias pessoais ou, como os imperadores assírios, mandando sacos de orelhas humanas, narizes e narinas bem cortadas pelo correio, mas sim da crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer sobre nós. Não somos livres. O céu ainda pode cair sobre nossas cabeças". Esse enunciado pode chocar, mas na medida em que desconstrói o corpo enquanto mero catalisador de operações sócio-culturais, dota-o de produção de sentido. Um corpo que dialoga com uma necessidade existencial, melhor ainda, um corpo que é existência; reintegrando o físico com o psíquico. Assim como o teatro enquanto comunhão viva e irradiante-irradiadora, o corpo é (re)dimensionamento sensório-perceptivo. Pensamento-bomba, pensamento-fecal, escrita do sangue. (Daniel Lins). Artaud e seus duplos excedem as bordas teatrais - 'tudo que atua é uma crueldade' (Artaud). Vão além e, na medida em que, constituem pensamento numa loucura que também é conhecimento, erguem uma filosofia do fogo, da carne, do sangue, das vísceras, dos excrementos, das fezes, do corpo sem órgãos. O teatro-corpo como uma peste delirante que grita e sussurra todos os desatinos possíveis do acontecimento, do encontro e da celebração. Desatinos do humano. "Podem me amarrar, uma camisa de forças não quer dizer nada, me metam numa camisa de forças, por que os órgãos mesmo não servem para nada, pra que servem meus órgãos?" (Artaud). Para ele, os órgãos não servem pra nada. Guilherme Bruno. Foram consultados: O artesão do corpo sem órgãos (Daniel Lins); Antonin Artaud: O corpo sem órgãos (Nara Sales); O teatro e seu duplo (Antonin Artaud); Palestra o corpo sem órgãos ministrada por Luiz Fuganti.

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