Eu me organizo pra me desorganizar.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Saltos, martelos e as peças de xadrez ou uma terrível e conturbada Anne ou as tentativas delas contra a vida dela

Sim, era um tempo esquizofrênico. Era um tempo dentro do tempo. Eram vários tempos. Uma forma - que é conteúdo - numa dança em xadrez. Rainhas, reis, cavalos, bispos, torres e peões duelavam no tempo-espaço. Não se trata de uma questão puramente de jogo, de jogo dramático. Trata-se de arranhaduras provocadas pela relação forma-conteúdo e pelo elo de ligação entre a encenação, o ator e o espaço. Nas tentativas delas, Tentativas contra a vida dela não esconde as inúmeras Annes que marcham como sombras corporificadas numa paisagem onde a pesquisa de linguagem é sustentáculo. Onde a força coletiva é banhada pelo desejo. Onde a acidez de Crimp - que pouco conheço, mas que me instiga - exerce um mobilizador de ilusões. Exerce sobretudo vozes de um tempo pós-o-que-quer-que-seja onde o motor é esse sujeito recluso, essa violência suprimida, essas mazelas do agora. Não há dúvidas de que o risco é o abismo irremediavelmente arquitetado do movimento que nos lança obliquamente (lembro-me agora das aulas de física). Dito de outra maneira: O risco é lançado, nem sempre calculado com precisão. Eu me jogo e a gravidade incide sobre mim; posso me esborrachar no chão, posso ganhar asas. Eu simplesmente ganho asas, porque o voo me convida e o voo é como o tempo: Ele é capaz de inaugurar novos horizontes. Traz consigo portanto, a fatalidade, todavia a fatalidade é bem-vinda. Não se deve negar a morte. A morte da convenção, da razão, dos estereótipos. Do que quer que seja.

Logo, recapitulo que essa fatalidade, essa dança em xadrez, essas tentativas, esse risco, esse tempo-espaço; tudo isso é fruto de escolhas, de afirmações e rejeições. É o fragmento a ilha detentora do movimento. Talvez não haja outro caminho. O caminho é este e que neste caso se materializa nas fraturas. O caminho é um labirinto de uma narratividade que se descola do fantasma do drama, que traz consigo imagens repletas de significantes abertos e irresolutos. Fechados, às vezes; pouco importa. Uma janela são mil janelas. Um corpo são mil corpos. Uma Anne são mil Annes. Infinidade. Em suma, são as possibilidades que o teatro traz-faz. O teatro faz sempre algo de novo, rapta o tempo nas fricções. Assim, sua poesia cabe dentro de um baú onde há a existência de muitos de 'si mesmos'. São muitos, os teatros. São muitos os momentos históricos que os atravessam: enigmas possivelmente decifrados. Foi assim para muitos.

Crimp fornece o enigma, o salto, e o grupo abraçou esse movimento. O salto que duvida da última velhinha da fileira do teatro e que, desestabiliza em algum nível, o espectador. O salto que reflete a estética e poética da obra. O salto que confere as camadas, as texturas, as sensações. O salto de Crimp foi solapado pelo salto do grupo, que se desgarrou de moletas. E se elas por vezes aparecem, um tempo maior de pesquisa a aniquilaria. Retorno à velhinha: A dúvida sobre sua audição, ultrapassa uma questão da convenção e alcança um grau de recepção. Não se deve descartar, no entanto, o respeito com toda(o) velinha(o). É apenas uma questão formal, teórica.

O movimento das peças do jogo de xadrez, operam no desbunde. Ele seria mais provocador e alerta, por outro lado, se a narratividade oral ganhasse mais densidade. Não se trata somente de encontrar a narratividade por meio da vocalidade, mas de perfurar o texto com outros dispositivos para encontrar a teatralidade. Desmoronamento da percepção. É como se pudéssemos pintar com outras cores a palavra, que por si só não dá conta da dimensão desejante do corpo. Do corpo.

Como diz Romeo Castellucci, encenador italiano, é preciso martelar. Martelar requer tempo, tempo que não se determina, tempo que o teatro exige. O importante, no fundo, são as tentativas. E em Tentativas, encontro martelos indispensáveis para o teatro. Principalmente, o cuidado, o zelo, a entrega. Que o Instituto Federal continue dando frutos, que o teatro prossiga, que esses operários continuem. Que olhemos as janelas dentro de nós mesmos. Que desconfiemos. Que erremos. Que façamos do teatro aquilo que ele mais sabe fazer: provocar e criar um outro mundo. E que, fiquemos resguardados sobre a égide do tempo: motor alucinante da existência. Sim, é um tempo esquizofrênico. Xeque-mate.

Agradecimentos aos atores - seres de luz: Amália Rodrigues, Edgleison Sousa, Fabiano Veríssimo, Luciellen Castro, Rafael Santos. À cenógrafa: Ela Nascimento. Ao figurinista: Cacau Francisco. Ao querido Robson Levy pela encenação. A Gyl Giffony pela provocação. A todos os envolvidos. Um abraço, Guilherme.

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